sábado, 28 de setembro de 2013

Bathory - Bathory


Foto frontal do álbum Bathory
Imaginação: ferramenta capaz de compor um universo; fonte de matéria prima da vida; traço inconfundível do ser humano. A habilidade de construir uma visão sob uma determinada perspectiva é atribuída ao poder de concepção transmitido pela mente, instrumento esse de vital importância para nossa existência. Distante de sua influência, nada se cria, pois as respostas para qualquer questão sempre partem de seu valioso princípio. Logo, entender sua função na nossa existência é um tarefa tão simples quanto complicada,   pois não são poucos os adjetivos que incrementam o significado desta brilhante capacidade.
Como todo tesouro, a imaginação está guardada em um baú que esconde tantas armadilhas quanto surpresas, nos colocando sempre em uma posição que nos deixa distante de sua total compreensão. O cérebro, órgão responsável por reger a ordem e a razão, impera neste mundo que é o organismo, ditando com mãos de ferro as regras a serem seguidas (embora muitos prefiram repousar a razão no colo de um coração clemente e irresponsável), num espaço em que o domínio do imaginário atinge proporções colossais. Afirmar que o homem pode seguir adiante sem a interferência da imaginação seria o mesmo que afundar qualquer expectativa de prosperidade na mais profunda cratera, sendo que ainda estamos longe de compreender o verdadeiro potencial desta magnífica ferramenta, que tanto nos difere dos demais seres vivos.
Embora a medicina e a tecnologia tenham provado que o cérebro não age como uma só peça, visto que o mesmo subdivide-se em vários setores onde cada um cumpre com uma função específica, seu potencial de criar, processar e concluir questões é assustadoramente enorme (imagine um banco de dados com espaço inesgotável, ou um HD que nunca enche), levando a crer que cada indivíduo possui um universo dentro de si, de proporções tão abrangentes quanto o espaço cósmico.
Diante de tal observação, torna-se curiosa a questão a ser levantada nessas linhas: como pode o cérebro, a poderosa massa cinzenta que tudo cria e concebe, nos permitir, principalmente no mundo cultural, falhar com a originalidade e pecar por conduzir nosso objetivo pelos rumos do comodismo e da banalidade, ainda mais atualmente, onde recursos não faltam para dar origem a propostas mais ousadas?
Talvez a culpa não seja dele, diria o advogado do diabo. Integrante do clube que é o corpo humano e, portanto, membro de uma agremiação, o cérebro nada mais faz que cumprir com a ânsia do homem, que tudo quer e tudo consome, sem distinção. O que mais se tem hoje em dia é uma porção desregrada de conteúdo muitas vezes desnecessário para nosso cotidiano que insistimos em incluir nas nossas vidas, gerando um acúmulo de princípios carentes de essência e saturado de futilidade. Se fosse possível, garanto que o cérebro pediria demissão, sairia de licença desta bagunça iminente e ainda puxaria o fio da tomada antes de dar tchau, sem dó.
Contudo, ainda há exceções. Não chegamos aonde chegamos por mero acaso, e o brilhantismo da imaginação ainda gera uma força capaz de mover montanhas, como pode ser visto no conto que se inicia no velho continente em 1983. O Heavy Metal estabilizava-se no cenário musical oferecendo uma proposta ousada de discutir os assuntos do cotidiano, empregando em suas abordagens temáticas que buscavam utilizar o máximo de recursos que a imaginação poderia oferecer. A NWOBHM, néctar dessas rosas de criatividade musical, mostrou ao mundo algumas das bandas que formam hoje a elite do som pesado, num cenário marcado por uma vastidão de referências a cultura e a história da humanidade em geral. Um desses conjuntos, o famigerado power trio VENOM, concebia uma peça que seria encenada por eles mesmos por toda a sua carreia, contudo seu enredo seria aprofundado apenas pela geração posterior, num cenário mais apropriado para sua apresentação. Criado a partir das mentes egocêntricas de Abaddon, Mantas e Cronos, o zombeteiro conjunto inglês não se preocupava com concorrência em seu campo, mesmo porque a proposta de unir satanismo com instrumental frenético não possuía fins filosóficos ou lucrativos. A única meta do grupo era mostrar seu trabalho para a maior quantidade de pessoas possível e ver aonde tudo chegaria. O pontapé dado em 1981 com WELCOME TO HELL geraria certa controvérsia na cena, inclusive algumas com comentários cômicos, principalmente relacionadas a técnica dos integrantes da banda, contudo no ano seguinte a coisa mudaria um pouco de figura. Atuando com mais propriedade, o conjunto lançou o álbum BLACK METAL, que não apenas mostrou uma dose maior de capacidade dos “capangas de satã” como também tratou de criar um novo gênero, abraçado por uma multidão sedenta por novidade.
Porém, engana-se quem pensa que o VENOM é o único responsável pelo surgimento e consolidação do Black Metal no mundo. Enquanto a banda preparava o terceiro ato da peça que era sua existência, uma ninhada de bandas muito bem munidas de couro, gelo seco e ambição debatia-se embaixo das asas negras dos rapazes satanistas, desesperadas por alçarem seus próprios voos, mesmo que isso significasse passar pelo risco de caírem do ninho. Não tardou para que saísse a primeira fornada de grupos que tratavam da mesma ideologia da banda inglesa, prezando pelo artifício da temática que inegavelmente trazia um desejo de curiosidade instantânea. É sabido que nos primeiros anos do Black Metal o satanismo ainda era uma grande pedra no sapato da sociedade, que atacava o gênero com extrema ferocidade, como um leão age sobre uma lebre, sem distinções de tamanho ou força. Diante desta torrente infernal, uma banda sueca tratava de deixar o cerco obscuro do underground e partir para o ataque aos ouvidos do mundo, ignorando os avisos constantes da moral que iniciava sua caça às bruxas, com direito a tochas e reuniões secretas, como era na Idade Média. O BATHORY, nome tirado por crédito a condessa húngara Elyzabeth Bathory, a qual viveu entre os séculos XVI e XVII e possui uma história relacionada a crimes hediondos, sendo considerada a maior serial killer da história da Europa com atrocidades compostas por técnicas de tortura e sadismo, tratou de botar seu trabalho à disposição da critica, onde o resultado dividiria opiniões. Apesar de ter sido criada em 1983 pelo seu líder, o vocalista e guitarrista Quorthon, somente uma primavera após foi possível conferir alguma amostra da capacidade do conjunto através da histórica compilação SCANDINAVIAN METAL ATTACK. O Split, bastante cultuado pelos fãs mais tradicionais, apresentava a banda citada, além dos grupos OZ, SPITFIRE, TRASH e ZERO NINE, no entanto notava-se claramente que a obra de Quorthon abrangia algo mais sombrio, mais denso. Seria como colocar um pingo de limão num copo d’água: por mais que mate a sede, fica um gosto amargo singular, que se distingue de todo o conteúdo provado.
O álbum com a capa e a contracapa
Animado pela repercussão do trabalho, o jovem sueco decidiu colocar em prática o processo de criação de seu primeiro full lenght, sendo que para tanto se ocupou do Heavenshore Studio localizado em Estocolmo, em seu próprio país, a partir do mês de Junho de 1984. Com a parceria do não menos misterioso Boss, em Outubro daquele ano sairia o disco autointitulado que ajudaria a definir as bases do Black Metal juntamente com o VENOM, por mais que houvessem muitas outras bandas envolvidas nesse processo de desenvolvimento do desejo de Satã.
Por incrível que pareça, a película apresenta menos de meia hora de conteúdo, onde a abertura com STORM OF DAMNATION ocupa inacreditáveis três minutos do trabalho com grunhidos e o barulho provocado pelo vento. A aparente insolência incitada pela banda criava uma atmosfera excessivamente longa, onde o suspense impera de maneira ímpar. No entanto, quando a faixa seguinte, HADES, entra em cena, o que temos é algo muito mais próximo do Crustpunk que do Heavy Metal. Não fosse a temática, haveria em cena mais uma banda repleta de alfinetes e tachinhas que, com uso de notas abafadas e desajustadas, propunha um convite à insanidade e a baderna.
Logo, diante da afirmação que a banda era composta por uma temática satanista já utilizada por outro grupo maior e, além disso, ainda contava com uma base mais Punk que Metal, é quase impossível não se levantar a pergunta: onde está a originalidade nessa história toda? Oras, falar de um grupo composto por três rapazes que usavam estereótipos no lugar dos nomes não é uma atitude original - ainda mais se tratando de Heavy Metal - sem contar que os conceitos de velocidade e técnica empregados pelo grupo poderiam ser mais bem apreciados em qualquer outra banda com um pouco mais de entrosamento. Onde o cérebro falhou com a criatividade desta vez?
Fazendo jus à verdade, o que torna este trabalho um marco do Metal Negro em todo o mundo não é a técnica demonstrada em cada solo, nem a criatividade em elaborar um bom riff ou em manter uma boa dose de conteúdo filosófico em suas letras. Como já discutido, a imaginação é igual a um foguete que parte rumo à escuridão do universo: ele pode tanto vagar eternamente no espaço vazio como encontrar um planeta novo, extraordinário e repleto de maravilhas. Só isso já cria uma margem sobre o potencial do imaginário na mente das pessoas, e o quanto essa capacidade pode alterar a realidade e fazer algo se tornar maior do que realmente é.
Visão diagonal do disco com o encarte aberto
Bom, foi o que ocorreu aqui. Se julgarmos o disco pelo conteúdo musical já citado, além da capa que apresenta nada mais que uma cabeça de bode em negativo extraída de um lugar qualquer, o que sobra é uma peça recheada de subjetividade, carente de bases concretas. O imaginário preenche o vazio criado pela abstração do trabalho, fazendo do álbum uma obra voltada literalmente para a imaginação de cada um. Não raro pode-se verificar ainda hoje pessoas prostradas em frente a película cheia de pentagramas e imagens em preto e branco se perguntando: “caramba! Olha só esse disco! Puta banda do demônio essa     hein?” sem se darem ao trabalho de analisar as características que compõem o conjunto. Como o Próprio Quorthon já havia mencionado em um trecho do livro HEAVY METAL – A HISTÓRIA COMPLETA (lançado no Brasil em 2010 pela editora ARX) “Depois de algum tempo nós percebemos que as pessoas eram atraídas pela banda por causa do aspecto misterioso. Não era algo que havíamos criado. A gente tinha só uma foto esculhambada em um fanzine, e o pessoal comprava a fantasia”.
Fantasia. Eis a palavra chave. Em um universo saturado pelo estereótipo, encharcado de linhas e mais linhas praticamente idênticas de guitarra e baixo, nada mais original que a fantasia para chamar a atenção do público. Sendo assim, o que temos nos pouco mais de vinte minutos que sobram após a segunda faixa é um trabalho que mistura sonoridade extremamente agressiva com uma boa carga de imaginação, que faz do conjunto da obra uma peça de enorme influência para toda uma etnia metaleira, ávida por explorar os caminhos do espaço recém-desbravado por estes vorazes pioneiros.
Não fosse pela quarta faixa, NECROMANSY, que traz toda a aura autêntica do Black Metal em si (tanto na parte musical quanto lírica) juntamente com a canção RAISE THE DEAD, com andamento cadenciado no início e velocidade estridente no final, as demais músicas passeiam pelo Crustpunk até com certa graça, ignorando os desejos ferrenhos de Satanás. O crédito sem dúvida pode ser dado aos “lacaios” de Quorthon (cujo nome verdadeiro era Ace Börje Forsberg), o baixista Rickard Ribban Bergman e o baterista Stefan Larsson, ambos integrantes de uma conhecida banda de Oi Punk da cena sueca, o STRIDSKUK. Isso resume bem o porquê da veia ensandecida do trio, que envolvido em um mistério absoluto disparava notas agudas e ríspidas como relâmpagos, que faziam as caixas de som contrair-se tal qual a grama diante do vento que precede a tempestade.



O álbum pronto para tocar
Se alguém ainda tem dúvidas do quanto a imaginação compôs grande parte desta arrancada do metal escandinavo, basta entender que o grupo continuou por mais três discos seguindo nesta linha musical, até desembocar em uma empreitada mais próxima de suas raízes bárbaras e se aventurar pela mitologia nórdica, dando origem a outro grande movimento do som pesado: o Viking Metal. Temos aí o exemplo que toda a geração seguinte do Black Metal se propôs a seguir: a ousadia, o ocultismo incondicional e principalmente a abstração e a criatividade iniciados por um grupo que, enquanto pôde, manteve firme a bandeira do anonimato e da simplicidade em virtude da capacidade humana de enxergar o que quiser da sua própria
realidade.