Foto frontal do álbum Bathory |
Imaginação: ferramenta capaz de compor um universo; fonte de matéria prima da vida; traço inconfundível do ser humano. A habilidade de construir uma visão sob uma determinada perspectiva é atribuída ao poder de concepção transmitido pela mente, instrumento esse de vital importância para nossa existência. Distante de sua influência, nada se cria, pois as respostas para qualquer questão sempre partem de seu valioso princípio. Logo, entender sua função na nossa existência é um tarefa tão simples quanto complicada, pois não são poucos os adjetivos que incrementam o significado desta brilhante capacidade.
Como todo tesouro, a imaginação está guardada em um baú que
esconde tantas armadilhas quanto surpresas, nos colocando sempre em uma posição
que nos deixa distante de sua total compreensão. O cérebro, órgão responsável
por reger a ordem e a razão, impera neste mundo que é o organismo, ditando com
mãos de ferro as regras a serem seguidas (embora muitos prefiram repousar a
razão no colo de um coração clemente e irresponsável), num espaço em que o
domínio do imaginário atinge proporções colossais. Afirmar que o homem pode
seguir adiante sem a interferência da imaginação seria o mesmo que afundar
qualquer expectativa de prosperidade na mais profunda cratera, sendo que ainda
estamos longe de compreender o verdadeiro potencial desta magnífica ferramenta,
que tanto nos difere dos demais seres vivos.
Embora a medicina e a tecnologia tenham provado que o
cérebro não age como uma só peça, visto que o mesmo subdivide-se em vários
setores onde cada um cumpre com uma função específica, seu potencial de criar,
processar e concluir questões é assustadoramente enorme (imagine um banco de
dados com espaço inesgotável, ou um HD que nunca enche), levando a crer que
cada indivíduo possui um universo dentro de si, de proporções tão abrangentes
quanto o espaço cósmico.
Diante de tal observação, torna-se curiosa a questão a ser levantada
nessas linhas: como pode o cérebro, a poderosa massa cinzenta que tudo cria e
concebe, nos permitir, principalmente no mundo cultural, falhar com a
originalidade e pecar por conduzir nosso objetivo pelos rumos do comodismo e da
banalidade, ainda mais atualmente, onde recursos não faltam para dar origem a
propostas mais ousadas?
Talvez a culpa não seja dele, diria o advogado do diabo.
Integrante do clube que é o corpo humano e, portanto, membro de uma agremiação,
o cérebro nada mais faz que cumprir com a ânsia do homem, que tudo quer e tudo
consome, sem distinção. O que mais se tem hoje em dia é uma porção desregrada
de conteúdo muitas vezes desnecessário para nosso cotidiano que insistimos em
incluir nas nossas vidas, gerando um acúmulo de princípios carentes de essência
e saturado de futilidade. Se fosse possível, garanto que o cérebro pediria
demissão, sairia de licença desta bagunça iminente e ainda puxaria o fio da
tomada antes de dar tchau, sem dó.
Contudo, ainda há exceções. Não chegamos aonde chegamos por
mero acaso, e o brilhantismo da imaginação ainda gera uma força capaz de mover
montanhas, como pode ser visto no conto que se inicia no velho continente em
1983. O Heavy Metal estabilizava-se no cenário musical oferecendo uma proposta
ousada de discutir os assuntos do cotidiano, empregando em suas abordagens
temáticas que buscavam utilizar o máximo de recursos que a imaginação poderia
oferecer. A NWOBHM, néctar dessas rosas de criatividade musical, mostrou ao
mundo algumas das bandas que formam hoje a elite do som pesado, num cenário
marcado por uma vastidão de referências a cultura e a história da humanidade em
geral. Um desses conjuntos, o famigerado power
trio VENOM, concebia uma peça
que seria encenada por eles mesmos por toda a sua carreia, contudo seu enredo
seria aprofundado apenas pela geração posterior, num cenário mais apropriado
para sua apresentação. Criado a partir das mentes egocêntricas de Abaddon, Mantas e Cronos, o zombeteiro
conjunto inglês não se preocupava com concorrência em seu campo, mesmo porque a
proposta de unir satanismo com instrumental frenético não possuía fins
filosóficos ou lucrativos. A única meta do grupo era mostrar seu trabalho para
a maior quantidade de pessoas possível e ver aonde tudo chegaria. O pontapé
dado em 1981 com WELCOME TO HELL
geraria certa controvérsia na cena, inclusive algumas com comentários cômicos,
principalmente relacionadas a técnica dos integrantes da banda, contudo no ano
seguinte a coisa mudaria um pouco de figura. Atuando com mais propriedade, o
conjunto lançou o álbum BLACK METAL,
que não apenas mostrou uma dose maior de capacidade dos “capangas de satã” como
também tratou de criar um novo gênero, abraçado por uma multidão sedenta por
novidade.
Porém, engana-se quem pensa que o VENOM é o único responsável pelo surgimento e consolidação do Black
Metal no mundo. Enquanto a banda preparava o terceiro ato da peça que era sua
existência, uma ninhada de bandas muito bem munidas de couro, gelo seco e
ambição debatia-se embaixo das asas negras dos rapazes satanistas, desesperadas
por alçarem seus próprios voos, mesmo que isso significasse passar pelo risco
de caírem do ninho. Não tardou para que saísse a primeira fornada de grupos que
tratavam da mesma ideologia da banda inglesa, prezando pelo artifício da
temática que inegavelmente trazia um desejo de curiosidade instantânea. É sabido
que nos primeiros anos do Black Metal o satanismo ainda era uma grande pedra no
sapato da sociedade, que atacava o gênero com extrema ferocidade, como um leão
age sobre uma lebre, sem distinções de tamanho ou força. Diante desta torrente
infernal, uma banda sueca tratava de deixar o cerco obscuro do underground e
partir para o ataque aos ouvidos do mundo, ignorando os avisos constantes da
moral que iniciava sua caça às bruxas, com direito a tochas e reuniões
secretas, como era na Idade Média. O BATHORY,
nome tirado por crédito a condessa húngara Elyzabeth
Bathory, a qual viveu entre os séculos XVI e XVII e possui uma história
relacionada a crimes hediondos, sendo considerada a maior serial killer da história da Europa com atrocidades compostas por
técnicas de tortura e sadismo, tratou de botar seu trabalho à disposição da critica,
onde o resultado dividiria opiniões. Apesar de ter sido criada em 1983 pelo seu
líder, o vocalista e guitarrista Quorthon,
somente uma primavera após foi possível conferir alguma amostra da capacidade
do conjunto através da histórica compilação SCANDINAVIAN METAL ATTACK. O Split, bastante cultuado pelos fãs mais
tradicionais, apresentava a banda citada, além dos grupos OZ, SPITFIRE, TRASH e ZERO NINE, no entanto notava-se claramente que a obra de Quorthon abrangia algo mais sombrio,
mais denso. Seria como colocar um pingo de limão num copo d’água: por mais que
mate a sede, fica um gosto amargo singular, que se distingue de todo o conteúdo
provado.
O álbum com a capa e a contracapa |
Por incrível que pareça, a película apresenta menos de meia
hora de conteúdo, onde a abertura com STORM
OF DAMNATION ocupa inacreditáveis três minutos do trabalho com grunhidos e
o barulho provocado pelo vento. A aparente insolência incitada pela banda
criava uma atmosfera excessivamente longa, onde o suspense impera de maneira
ímpar. No entanto, quando a faixa seguinte, HADES, entra em cena, o que temos é
algo muito mais próximo do Crustpunk que do Heavy Metal. Não fosse a temática,
haveria em cena mais uma banda repleta de alfinetes e tachinhas que, com uso de
notas abafadas e desajustadas, propunha um convite à insanidade e a baderna.
Logo, diante da afirmação que a banda era composta por uma
temática satanista já utilizada por outro grupo maior e, além disso, ainda
contava com uma base mais Punk que Metal, é quase impossível não se levantar a
pergunta: onde está a originalidade nessa história toda? Oras, falar de um
grupo composto por três rapazes que usavam estereótipos no lugar dos nomes não
é uma atitude original - ainda mais se tratando de Heavy Metal - sem contar que
os conceitos de velocidade e técnica empregados pelo grupo poderiam ser mais
bem apreciados em qualquer outra banda com um pouco mais de entrosamento. Onde
o cérebro falhou com a criatividade desta vez?
Fazendo jus à verdade, o que torna este trabalho um marco do
Metal Negro em todo o mundo não é a técnica demonstrada em cada solo, nem a
criatividade em elaborar um bom riff
ou em manter uma boa dose de conteúdo filosófico em suas letras. Como já
discutido, a imaginação é igual a um foguete que parte rumo à escuridão do
universo: ele pode tanto vagar eternamente no espaço vazio como encontrar um
planeta novo, extraordinário e repleto de maravilhas. Só isso já cria uma
margem sobre o potencial do imaginário na mente das pessoas, e o quanto essa
capacidade pode alterar a realidade e fazer algo se tornar maior do que
realmente é.
Visão diagonal do disco com o encarte aberto |
Fantasia. Eis a palavra chave. Em um universo saturado pelo
estereótipo, encharcado de linhas e mais linhas praticamente idênticas de
guitarra e baixo, nada mais original que a fantasia para chamar a atenção do
público. Sendo assim, o que temos nos pouco mais de vinte minutos que sobram
após a segunda faixa é um trabalho que mistura sonoridade extremamente
agressiva com uma boa carga de imaginação, que faz do conjunto da obra uma peça
de enorme influência para toda uma etnia metaleira, ávida por explorar os
caminhos do espaço recém-desbravado por estes vorazes pioneiros.
O álbum pronto para tocar |
Se alguém ainda tem dúvidas do quanto a imaginação compôs
grande parte desta arrancada do metal escandinavo, basta entender que o grupo
continuou por mais três discos seguindo nesta linha musical, até desembocar em
uma empreitada mais próxima de suas raízes bárbaras e se aventurar pela
mitologia nórdica, dando origem a outro grande movimento do som pesado: o
Viking Metal. Temos aí o exemplo que toda a geração seguinte do Black Metal se
propôs a seguir: a ousadia, o ocultismo incondicional e principalmente a
abstração e a criatividade iniciados por um grupo que, enquanto pôde, manteve
firme a bandeira do anonimato e da simplicidade em virtude da capacidade humana
de enxergar o que quiser da sua própria
realidade.
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