domingo, 17 de novembro de 2013

Altars Of Madness - Morbid Angel

O disco em sua versão dualdisc remasterizado, de 2006.
A humanidade, na esperança de encontrar um refúgio para suas expectativas, procura sempre apoiarem-se nas mais diferentes vias. Desde os primórdios, nas épocas em que desenhávamos nas paredes figuras de animais com o intuito de, a partir de tal manifesto, realizar literalmente a captura da alma da criatura para então facilitar o processo da caça, passamos a sustentar nossas ideias nos atributos sobrenaturais, de qualidades existentes, porém nunca completamente comprovadas ou compreendidas. Atribuíamos às manifestações naturais qualidades que estavam além da nossa compreensão, visando justamente compreender seus efeitos, nascendo daí os paradigmas para o domínio de tais fatores. A manipulação do fogo e a construção de ferramentas para propagar o pensamento humano partiram deste princípio.
A humanidade foi evoluindo com o alvorecer das eras, trazendo mais conhecimento sobre estas manifestações e aprimorando o que já havia explorado. Os povos do oriente já praticavam atos religiosos para os mais diversos fins, seja para vida ou para a morte, condensando muitos conceitos pelos quais já havia experimentado uma ou outra sensação peculiar. Cultos surgiram para reverenciar os atributos da terra, enquanto outros procuravam exaltar sua adoração aos mares e aos céus, encerrando um ciclo que só prosperava, conforme a própria humanidade encontrava-se cada vez mais acolhida pelo senso de compreensão e domínio do fantástico e do sobrenatural.
Mestres em compreender os efeitos da natureza sobre os seres vivos, os egípcios tinham enraizada em sua cultura diversas formas de expressar essas manifestações. O ato religioso estava entrelaçado não só com sua vida, mas com sua existência em geral, passando pelo mais alto posto entre os indivíduos de seu povo, o faraó, até o mais reles camponês. Grupos religiosos procuravam dar uma razão para todo o universo sobrenatural, personificando tais manifestações no formato de deuses, adorados por toda uma raça, na saúde ou na doença, na vitória ou na derrota. Não foi diferente com os gregos, nem com os assírios, muito menos com os povos do leste e do sul do planeta. Até mesmo aqui, nas terras tropicais da América existiam povos que pregavam sua conduta religiosa baseada amplamente em sua própria forma de ver e encarar o mundo.
A questão moral de todo caso manifesta-se no ponto onde o indivíduo, munido de todo esse domínio sobre o ato religioso e seus potenciais benefícios procura, se não totalmente, com frequência o amparo da religião para combater suas aflições. Não seria errado encontrar um refúgio na fé, visto que a mesma encontra-se em cada um de nós, mas torna-se mesmo necessário o ato de ir de encontro à religião para resolver todos os problemas que surgem diante de nós? Seria a raça humana de hoje um produto da alienação, visto que desde nossa existência como seres racionais sempre atribuímos a religião o caráter de mediadora entre o compreensível e o incompreensível?
Foi partindo deste princípio que o então sonhador George Emmanoel III, nascido em Bellingham, cidade localizada no estado norte-americano de Washington, decidiu por início em sua empreitada rumo ao “desafogamento” do subconsciente humano. Dotado de uma capacidade que o permitia ver muito além dos dogmas existentes em cada religião, o jovem alto, magro e de cabelos negros engrenhados desfilava uma visão muito tenaz sobre o ato da fé comungada nas inúmeras formas de religião que existem no planeta. Não obstante, sua forma de empregar tal domínio das ideias dentro de um espaço de ampla discussão deu-se da maneira mais radical possível: no campo da música pesada. Guitarrista promissor, já reconhecido entre os familiares e amigos como um grande gênio das seis cordas, mudou-se para a cidade de Tampa, município com a maior população do condado de Hillsborough, na Flórida, iniciando uma carreira que lhe traria um sucesso talvez jamais imaginado. Adotando o pseudônimo de Trey Azagthoth, ao qual credita aos ‘Deuses Ocultos Antigos’ rumou para seu objetivo com uma criação que, nas suas palavras, exprimia o “puro caos”. Era 1984 quando, da mente de um ser obstinado pela própria conduta nascia o MORBID ANGEL.
Até que Trey juntasse forças com o vocalista e baixista Dallas Ward e o baterista e também vocalista Mike Browning, sua criação praticava apenas performances instrumentais. Tendo um time consigo, os trabalhos foram ganhando forma, atravessando os primeiros anos reagindo bem aos ideais propostos por seu líder. Contudo, foram necessárias algumas boas demos e splits no mercado para o grupo alinhar-se, passando por diversas reformulações até culminar em seu line-up definitivo, estabilizando-se com David Vincent no vocal e baixo, Richard Brunelle dividindo as guitarras com Trey e Pete Sandoval no comando das baquetas.
Sem desviar-se do foco principal e fazendo justiça aos seus ideais contra a doutrina religiosa como ferramenta de manipulação, a banda era adepta de conceitos satânicos e antirreligiosos em sua temática, trabalhado de forma bem acurada os princípios que a faziam tão única no cenário do som extremo. O fato de o death metal ter surgido com força na segunda metade da década de oitenta ajudou a alavancar o status da banda, apontada como uma das pioneiras do gênero, ao lado das igualmente velozes, pesadas e (pelo menos no início) blasfemas DEATH e POSSESSED. Comparações à parte, o fato é que com o MORBID ANGEL todo esse universo ganhava uma nova aura, com um status que ia além da mera abstração, buscando algo mais sólido, tangível. Era assombrosa a forma como Trey tocava nos shows, com direito a atos de automutilação para fins ritualísticos. Enquanto o sangue literalmente corria entre seus dedos, as milhares de notas despejadas com uma inacreditável precisão deixavam os espectadores boquiabertos, como que diante da sinfonia do juízo final. Fã declarado da lenda Jimi Hendrix, tinha como sua maior inspiração as composições clássicas do austríaco Mozart, enquanto sua referência máxima na guitarra era o líder do grupo de hard rock VAN HALEN, Eddie Van Halen. A destruição sonora seguia firme acompanhada pelas batidas insanas de Pete, que mostrava com extrema competência o que muitos achavam impossível de se executar, sendo que as apresentações eram completadas pela presença marcante de David com seu vocal semi urrado, trazendo à tona notas marretadas de baixo e a guitarra notável de Richard, segurando as pontas deixadas entre os solos desconcertantes e a cacofonia sonora projetada pela banda, das paredes de amplificadores direto para os ouvidos desprotegidos da plateia. Covardia.
Amparada por toda a bagagem que possuía durante os anos em que esteve literalmente inserido no underground musical, o grupo gravou em 1986 o álbum ABOMINATIONS OF DESOLATIONS, carregado com toda a distorção e primitivismo possível. Contudo, a obra não viu a luz do dia durante aquela década, sendo que o trabalho ficou engavetado por cinco anos, vindo a ser lançado apenas em 1991. Tal fato impediu que o disco se tornasse o primeiro full lenght da banda, abrindo espaço para a joia que debutou o conjunto para o estrelato.
O disco com o encarte aberto, mostrando as letras das musicas e algumas fotos raras do início da banda.
Gravado na Meca do som extremo, o Morrisound Studois, localizado na mesma cidade da banda e produzido por Dig Pearson em parceria com o grupo, foi no dia 12 de Maio de 1989 que o mundo presenciou a peça cujo tema principal trazia todos os elementos dos quais Trey tanto estava obcecado em disseminar. ALTARS OF MADNESS veio ao mundo embalado por uma capa concebida pelo ilustrador Dan, do ‘Orrible Artwork que traduz bem a temática do título e do álbum, onde um portal abre-se dos céus para trazer ao nosso plano criaturas de um espaço caótico e nefasto, reproduzindo bem os conceitos de irregularidade propagados pelo conjunto. A película abre com a faixa IMMORTAL RITES e logo de cara percebe-se que a banda nasceu para manter erguida a bandeira da vanguarda no universo do som extremo. Com um acompanhamento de teclado que intercala os momentos mais intensos da faixa, a levada incomum até mesmo para o Death Metal mostra muito mais que ousadia. O som traz à tona aquela sensação singular que se tem apenas quando o suspense atinge o clímax. Canção digna dos grandes filmes de terror.
A sequência traz a música SUFFOCATION que, embalada pelas mesmas notas ríspidas e abafadas, mantém ativa a mesma sensação. Durante a metade da faixa é possível acompanhar uma daquelas ‘paradinhas’ tão comuns às bandas de Thrash Metal, sendo que apenas o baixo de David dá o ar da graça. São menos de cinco segundos onde o instrumento brilha de forma única. No fim, um solo absurdo executado por Trey deixa a digital da originalidade. De arrebentar com os ossos do pescoço!
A faixa VISIONS OF THE DARK SIDE traz o resultado dos vários anos praticando uma mesma base sonora, mostrando um conjunto extremamente entrosado. As guitarras seguem em ritmo de desconstrução de escalas, onde aparentemente tudo vai sair do controle. Talvez isso até ocorresse, não fosse a pegada precisa de Pete, um visionário do bumbo duplo. Das mãos de Trey surge o riff que precede uma avalanche de notas destruidoras, engajada por uma gargalhada horripilante de David. MAZE OF TORMENT desenrola uma das canções mais emblemáticas da banda, onde as ilusões vividas pelas pessoas tomam forma e assume a realidade, tornando o indivíduo um escravo de seu próprio universo. O mesmo riff inicial reaparece logo após a execução da segunda parte da faixa, só que de maneira muito mais arrastada, tornando o clima do disco em algo terrivelmente hipnótico. Aos desavisados, essa faixa pode causar convulsões. CHAPEL OF GHOULS é provavelmente a canção mais famosa do disco, onde o teclado novamente acompanha os momentos mais inspirados da musica. O peso está em evidência, assim como os solos distorcidos e desconexos, mantidos em ordem com dificuldade pelos demais instrumentos. Todo esse conjunto instrumental foi feito de propósito, não deixando brecha alguma mesmo com toda a bagunça aparente. BLEED FOR THE DEVIL deixa clara as influências das bandas de Speed e Black Metal mais antigas, onde os bumbos do kit de Pete trabalham a mil por hora. Curiosamente a faixa encerra-se aos exatos 2min. e 22seg.
DAMNATION segue a mesma filosofia da faixa anterior, dando ênfase para a bateria e o sincronismo das guitarras. Fica claro nesta faixa que Trey era um partidário da revolução do instrumento dentro do som extremo, sendo que sua técnica acurada serviria de inspiração para toda uma geração de grupos. Os primeiros segundo de BLASPHEMY trazem um tiroteio frenético, embalado pelo vocal firme de David e pela velocidade absurda de todos os instrumentos. Enquanto o vocalista discorre temas profanos como um sacerdote demoníaco, a faixa alterna entre momentos de pura distorção e outros mais lúcidos, com direito a levadas cadenciadas, inclusive. O badalar de algumas barras encerra a canção com méritos. EVIL SPELLS é a música que põe créditos finais ao LP, sendo que os primeiros segundos da canção trazem o lado mais agressivo do conjunto, mas parece que aqui tudo se condensa como se fosse um resumo de todo o disco. Nota-se a distorção dos instrumentos, a cadência e a velocidade absurda da bateria, o compasso preciso dos integrantes da banda, enfim, toda a obra encaixada em uma única faixa. O final traz um lance inusitado entre os instrumentos, onde a progressão das notas leva a música para uma sequência aparentemente interminável, como um ciclo infinito. E lá se vão os quase quarenta minutos da bolacha.
Muito além do fato do MORBID ANGEL ter se tornado com o passar dos anos uma das mais influentes bandas de Death Metal de todos os tempos (os anos posteriores comprovariam este feio, sendo que a banda atingiu a marca de mais de um milhão de cópias vendidas somando todos os seus trabalhos), o grupo mostrou ao mundo indivíduos com talento ímpar para compor e executar canções dentro do universo do ocultismo. Embora todos os integrantes do conjunto tenham participado do processo de composição das faixas do álbum, nota-se que há um destaque para Trey Azagthoth e David Vincent, que aparecem creditados em oitos das nove faixas regulares do trabalho. Enfim Trey pôde mostrar ao mundo sua filosofia de vida, e o mesmo em retribuição passou a acompanhar sua jornada rumo à autossuficiência do intelectual humano.
O álbum em si simplesmente abalou as estruturas do underground, proporcionado uma reviravolta jamais vista no som extremo. Se for possível dar conceito para o gênero musical executado pelos rapazes, é perfeitamente aceitável que a banda ajudou a desenvolver a primeira, a segunda e até a terceira escola do Death e do Black Metal, sendo esta última a absorver os conceitos do grupo de uma forma mais emblemática. Logo após o lançamento o disco atingiu rapidamente o primeiro lugar das paradas musicais independentes da Europa, proporcionando ao conjunto a chance de encabeçar a notável Grindcrusher Tour, que passeou pelo velho continente movida ao som de CARCASS, BOLT THROWER e NAPALM DEATH. Se isso ainda não prova que no final dos anos oitenta o grupo estava no topo da montanha do som extremo, vale lembrar que é dela o privilégio de ter sido a primeira banda a assinar um contrato com um grande selo, o Giant Records, em associação com nada menos que a Warner Brothers Records. Um feito para poucos.
Ainda hoje, vinte e cinco anos após o lançamento do disco, esta pérola ainda gera impacto na comunidade headbanger. O advento do CD proporcionou ao relançamento do álbum a faixa LORD OF ALL FEVERS AND PLAGUE, que preencheu o meio do disco, apresentando a mesma pegada das   demais faixas. Em 2006, o CD foi lançado no formato dualdisc, sendo que um lado agrega a parte comum da gravação e a outra um DVD contendo uma das apresentações insanas do grupo, regadas a exibições irrepreensíveis de Trey e companhia.
Os portais do mundo terreno foram profanados, e a humanidade estava exposta a um novo conceito filosófico, que quase rompe com os padrões básicos da música pesada. Em suas composições, Trey Azagthoth enfatiza que o objetivo do conjunto é livrar o ser humano da condição de “cego” que se encontra em relação a si mesmo. Ele fundamenta sua opinião no fato de existirem indivíduos no mundo inteiro que fecharam seus olhos para as questões mais intimas existentes em cada um, preferindo escolher a comodidade de qualquer religião para resolver suas questões. Com o passar dos anos os conceitos satanistas deram espaço para outras experimentações, modificando levemente os padrões estéticos do conjunto, mas nunca tirando o foco deste revolucionário da música. Entender a relação que separa o homem da religião e o apresenta aos seus próprios dogmas existenciais, tornando-o um ser lúcido de suas ações é uma condição para poucos. Creio que os passos de Trey ainda continuam firmes em sua jornada.


O álbum no ponto para tocar.

Escrito em 23 de Junho de 2013 às 20hrs. e 15min.


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