O disco em sua versão dualdisc remasterizado, de 2006. |
A humanidade, na esperança de encontrar um refúgio para suas
expectativas, procura sempre apoiarem-se nas mais diferentes vias. Desde os
primórdios, nas épocas em que desenhávamos nas paredes figuras de animais com o
intuito de, a partir de tal manifesto, realizar literalmente a captura da alma
da criatura para então facilitar o processo da caça, passamos a sustentar
nossas ideias nos atributos sobrenaturais, de qualidades existentes, porém
nunca completamente comprovadas ou compreendidas. Atribuíamos às manifestações
naturais qualidades que estavam além da nossa compreensão, visando justamente
compreender seus efeitos, nascendo daí os paradigmas para o domínio de tais
fatores. A manipulação do fogo e a construção de ferramentas para propagar o
pensamento humano partiram deste princípio.
A humanidade foi evoluindo com o alvorecer das eras,
trazendo mais conhecimento sobre estas manifestações e aprimorando o que já
havia explorado. Os povos do oriente já praticavam atos religiosos para os mais
diversos fins, seja para vida ou para a morte, condensando muitos conceitos
pelos quais já havia experimentado uma ou outra sensação peculiar. Cultos
surgiram para reverenciar os atributos da terra, enquanto outros procuravam
exaltar sua adoração aos mares e aos céus, encerrando um ciclo que só
prosperava, conforme a própria humanidade encontrava-se cada vez mais acolhida
pelo senso de compreensão e domínio do fantástico e do sobrenatural.
Mestres em compreender os efeitos da natureza sobre os seres
vivos, os egípcios tinham enraizada em sua cultura diversas formas de expressar
essas manifestações. O ato religioso estava entrelaçado não só com sua vida,
mas com sua existência em geral, passando pelo mais alto posto entre os
indivíduos de seu povo, o faraó, até o mais reles camponês. Grupos religiosos
procuravam dar uma razão para todo o universo sobrenatural, personificando tais
manifestações no formato de deuses, adorados por toda uma raça, na saúde ou na
doença, na vitória ou na derrota. Não foi diferente com os gregos, nem com os
assírios, muito menos com os povos do leste e do sul do planeta. Até mesmo
aqui, nas terras tropicais da América existiam povos que pregavam sua conduta
religiosa baseada amplamente em sua própria forma de ver e encarar o mundo.
A questão moral de todo caso manifesta-se no ponto onde o
indivíduo, munido de todo esse domínio sobre o ato religioso e seus potenciais
benefícios procura, se não totalmente, com frequência o amparo da religião para
combater suas aflições. Não seria errado encontrar um refúgio na fé, visto que
a mesma encontra-se em cada um de nós, mas torna-se mesmo necessário o ato de ir
de encontro à religião para resolver todos os problemas que surgem diante de
nós? Seria a raça humana de hoje um produto da alienação, visto que desde nossa
existência como seres racionais sempre atribuímos a religião o caráter de
mediadora entre o compreensível e o incompreensível?
Foi partindo deste princípio que o então sonhador George Emmanoel III, nascido em
Bellingham, cidade localizada no estado norte-americano de Washington, decidiu
por início em sua empreitada rumo ao “desafogamento” do subconsciente humano.
Dotado de uma capacidade que o permitia ver muito além dos dogmas existentes em
cada religião, o jovem alto, magro e de cabelos negros engrenhados desfilava
uma visão muito tenaz sobre o ato da fé comungada nas inúmeras formas de
religião que existem no planeta. Não obstante, sua forma de empregar tal
domínio das ideias dentro de um espaço de ampla discussão deu-se da maneira
mais radical possível: no campo da música pesada. Guitarrista promissor, já
reconhecido entre os familiares e amigos como um grande gênio das seis cordas,
mudou-se para a cidade de Tampa, município com a maior população do condado de
Hillsborough, na Flórida, iniciando uma carreira que lhe traria um sucesso
talvez jamais imaginado. Adotando o pseudônimo de Trey Azagthoth, ao qual credita aos ‘Deuses Ocultos Antigos’ rumou
para seu objetivo com uma criação que, nas suas palavras, exprimia o “puro
caos”. Era 1984 quando, da mente de um ser obstinado pela própria conduta
nascia o MORBID ANGEL.
Até que Trey
juntasse forças com o vocalista e baixista Dallas
Ward e o baterista e também vocalista Mike
Browning, sua criação praticava apenas performances instrumentais. Tendo um
time consigo, os trabalhos foram ganhando forma, atravessando os primeiros anos
reagindo bem aos ideais propostos por seu líder. Contudo, foram necessárias
algumas boas demos e splits no mercado para o grupo
alinhar-se, passando por diversas reformulações até culminar em seu line-up definitivo, estabilizando-se com
David Vincent no vocal e baixo, Richard Brunelle dividindo as guitarras
com Trey e Pete Sandoval no comando das baquetas.
Sem desviar-se do foco principal e fazendo justiça aos seus
ideais contra a doutrina religiosa como ferramenta de manipulação, a banda era
adepta de conceitos satânicos e antirreligiosos em sua temática, trabalhado de
forma bem acurada os princípios que a faziam tão única no cenário do som
extremo. O fato de o death metal ter
surgido com força na segunda metade da década de oitenta ajudou a alavancar o
status da banda, apontada como uma das pioneiras do gênero, ao lado das
igualmente velozes, pesadas e (pelo menos no início) blasfemas DEATH e POSSESSED. Comparações à parte, o fato é que com o MORBID ANGEL todo esse universo ganhava
uma nova aura, com um status que ia além da mera abstração, buscando algo mais
sólido, tangível. Era assombrosa a forma como Trey tocava nos shows, com direito a atos de automutilação para
fins ritualísticos. Enquanto o sangue literalmente corria entre seus dedos, as
milhares de notas despejadas com uma inacreditável precisão deixavam os espectadores
boquiabertos, como que diante da sinfonia do juízo final. Fã declarado da lenda
Jimi Hendrix, tinha como sua maior
inspiração as composições clássicas do austríaco Mozart, enquanto sua referência máxima na guitarra era o líder do
grupo de hard rock VAN HALEN, Eddie Van Halen. A destruição sonora seguia firme acompanhada pelas
batidas insanas de Pete, que mostrava
com extrema competência o que muitos achavam impossível de se executar, sendo
que as apresentações eram completadas pela presença marcante de David com seu vocal semi urrado, trazendo
à tona notas marretadas de baixo e a guitarra notável de Richard, segurando as pontas deixadas entre os solos
desconcertantes e a cacofonia sonora projetada pela banda, das paredes de
amplificadores direto para os ouvidos desprotegidos da plateia. Covardia.
Amparada por toda a bagagem que possuía durante os anos em
que esteve literalmente inserido no underground musical, o grupo gravou em 1986
o álbum ABOMINATIONS OF DESOLATIONS,
carregado com toda a distorção e primitivismo possível. Contudo, a obra não viu
a luz do dia durante aquela década, sendo que o trabalho ficou engavetado por
cinco anos, vindo a ser lançado apenas em 1991. Tal fato impediu que o disco se
tornasse o primeiro full lenght da
banda, abrindo espaço para a joia que debutou o conjunto para o estrelato.
O disco com o encarte aberto, mostrando as letras das musicas e algumas fotos raras do início da banda. |
Gravado na Meca do som extremo, o Morrisound Studois, localizado
na mesma cidade da banda e produzido por Dig
Pearson em parceria com o grupo, foi no dia 12 de Maio de 1989 que o mundo
presenciou a peça cujo tema principal trazia todos os elementos dos quais Trey tanto estava obcecado em disseminar.
ALTARS OF MADNESS veio ao mundo
embalado por uma capa concebida pelo ilustrador Dan, do ‘Orrible Artwork que traduz bem a temática do título e do
álbum, onde um portal abre-se dos céus para trazer ao nosso plano criaturas de
um espaço caótico e nefasto, reproduzindo bem os conceitos de irregularidade
propagados pelo conjunto. A película abre com a faixa IMMORTAL RITES e logo de cara percebe-se que a banda nasceu para
manter erguida a bandeira da vanguarda no universo do som extremo. Com um
acompanhamento de teclado que intercala os momentos mais intensos da faixa, a
levada incomum até mesmo para o Death Metal mostra muito mais que ousadia. O som traz à tona aquela sensação
singular que se tem apenas quando o suspense atinge o clímax. Canção digna dos
grandes filmes de terror.
A sequência traz a música SUFFOCATION que, embalada pelas mesmas notas ríspidas e abafadas,
mantém ativa a mesma sensação. Durante a metade da faixa é possível acompanhar
uma daquelas ‘paradinhas’ tão comuns às bandas de Thrash Metal, sendo que apenas o baixo de David dá o ar da graça. São menos de cinco segundos onde o
instrumento brilha de forma única. No fim, um solo absurdo executado por Trey deixa a digital da originalidade.
De arrebentar com os ossos do pescoço!
A faixa VISIONS OF
THE DARK SIDE traz o resultado dos vários anos praticando uma mesma base sonora,
mostrando um conjunto extremamente entrosado. As guitarras seguem em ritmo de
desconstrução de escalas, onde aparentemente tudo vai sair do controle. Talvez
isso até ocorresse, não fosse a pegada precisa de Pete, um visionário do bumbo duplo. Das mãos de Trey surge o riff que precede uma avalanche de notas destruidoras, engajada por
uma gargalhada horripilante de David.
MAZE OF TORMENT desenrola uma das
canções mais emblemáticas da banda, onde as ilusões vividas pelas pessoas tomam
forma e assume a realidade, tornando o indivíduo um escravo de seu próprio
universo. O mesmo riff inicial
reaparece logo após a execução da segunda parte da faixa, só que de maneira
muito mais arrastada, tornando o clima do disco em algo terrivelmente
hipnótico. Aos desavisados, essa faixa pode causar convulsões. CHAPEL OF GHOULS é provavelmente a
canção mais famosa do disco, onde o teclado novamente acompanha os momentos
mais inspirados da musica. O peso está em evidência, assim como os solos
distorcidos e desconexos, mantidos em ordem com dificuldade pelos demais
instrumentos. Todo esse conjunto instrumental foi feito de propósito, não
deixando brecha alguma mesmo com toda a bagunça aparente. BLEED FOR THE DEVIL deixa clara as influências das bandas de Speed e Black Metal mais antigas, onde os bumbos do kit de Pete trabalham a mil por hora.
Curiosamente a faixa encerra-se aos exatos 2min. e 22seg.
DAMNATION segue a
mesma filosofia da faixa anterior, dando ênfase para a bateria e o sincronismo
das guitarras. Fica claro nesta faixa que Trey
era um partidário da revolução do instrumento dentro do som extremo, sendo que
sua técnica acurada serviria de inspiração para toda uma geração de grupos. Os
primeiros segundo de BLASPHEMY
trazem um tiroteio frenético, embalado pelo vocal firme de David e pela velocidade absurda de todos os instrumentos. Enquanto
o vocalista discorre temas profanos como um sacerdote demoníaco, a faixa
alterna entre momentos de pura distorção e outros mais lúcidos, com direito a
levadas cadenciadas, inclusive. O badalar de algumas barras encerra a canção
com méritos. EVIL SPELLS é a música
que põe créditos finais ao LP, sendo que os primeiros segundos da canção trazem
o lado mais agressivo do conjunto, mas parece que aqui tudo se condensa como se
fosse um resumo de todo o disco. Nota-se a distorção dos instrumentos, a
cadência e a velocidade absurda da bateria, o compasso preciso dos integrantes
da banda, enfim, toda a obra encaixada em uma única faixa. O final traz um
lance inusitado entre os instrumentos, onde a progressão das notas leva a
música para uma sequência aparentemente interminável, como um ciclo infinito. E
lá se vão os quase quarenta minutos da bolacha.
Muito além do fato do MORBID
ANGEL ter se tornado com o passar dos anos uma das mais influentes bandas
de Death Metal de todos os tempos (os
anos posteriores comprovariam este feio, sendo que a banda atingiu a marca de
mais de um milhão de cópias vendidas somando todos os seus trabalhos), o grupo mostrou
ao mundo indivíduos com talento ímpar para compor e executar canções dentro do
universo do ocultismo. Embora todos os integrantes do conjunto tenham
participado do processo de composição das faixas do álbum, nota-se que há um
destaque para Trey Azagthoth e David Vincent, que aparecem creditados
em oitos das nove faixas regulares do trabalho. Enfim Trey pôde mostrar ao mundo sua filosofia de vida, e o mesmo em
retribuição passou a acompanhar sua jornada rumo à autossuficiência do
intelectual humano.
O álbum em si simplesmente abalou as estruturas do underground,
proporcionado uma reviravolta jamais vista no som extremo. Se for possível dar
conceito para o gênero musical executado pelos rapazes, é perfeitamente
aceitável que a banda ajudou a desenvolver a primeira, a segunda e até a
terceira escola do Death e do Black Metal, sendo esta última a absorver
os conceitos do grupo de uma forma mais emblemática. Logo após o lançamento o disco
atingiu rapidamente o primeiro lugar das paradas musicais independentes da
Europa, proporcionando ao conjunto a chance de encabeçar a notável Grindcrusher
Tour, que passeou pelo velho continente movida ao som de CARCASS, BOLT THROWER e NAPALM DEATH. Se isso ainda não prova
que no final dos anos oitenta o grupo estava no topo da montanha do som
extremo, vale lembrar que é dela o privilégio de ter sido a primeira banda a
assinar um contrato com um grande selo, o Giant Records, em associação com nada
menos que a Warner Brothers Records. Um feito para poucos.
Ainda hoje, vinte e cinco anos após o lançamento do disco,
esta pérola ainda gera impacto na comunidade headbanger. O advento do CD proporcionou ao relançamento do álbum a
faixa LORD OF ALL FEVERS AND PLAGUE,
que preencheu o meio do disco, apresentando a mesma pegada das demais faixas. Em 2006, o CD foi lançado no
formato dualdisc, sendo que um lado
agrega a parte comum da gravação e a outra um DVD contendo uma das
apresentações insanas do grupo, regadas a exibições irrepreensíveis de Trey e companhia.
Os portais do mundo terreno foram profanados, e a humanidade
estava exposta a um novo conceito filosófico, que quase rompe com os padrões
básicos da música pesada. Em suas composições, Trey Azagthoth enfatiza que o objetivo do conjunto é livrar o ser
humano da condição de “cego” que se encontra em relação a si mesmo. Ele fundamenta sua opinião no fato de
existirem indivíduos no mundo inteiro que fecharam seus olhos para as questões
mais intimas existentes em cada um, preferindo escolher a comodidade de
qualquer religião para resolver suas questões. Com o passar dos anos os
conceitos satanistas deram espaço para outras experimentações, modificando
levemente os padrões estéticos do conjunto, mas nunca tirando o foco deste
revolucionário da música. Entender a relação que separa o homem da religião e o
apresenta aos seus próprios dogmas existenciais, tornando-o um ser lúcido de
suas ações é uma condição para poucos. Creio que os passos de Trey ainda continuam firmes em sua
jornada.
O álbum no ponto para tocar. |
Escrito em 23 de Junho de 2013 às 20hrs. e 15min.
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