O clássico disco e sua, digamos, polêmica capa. |
Vou começar o texto dessa semana com um ditado batido, mas
bem batido mesmo: nunca, JAMAIS julgue um livro pela capa. Isso ocorre com
muita frequência no dia-a-dia, desde o momento em que acordamos e uma vez mais
examinamos tudo que nos cerca durante o dia até o momento em que fechamos os
olhos antes de cair no sono. Não por menos, a forma como vemos e encaramos tudo
ao nosso redor nada mais é do que a nossa parcela de contribuição para fazer a
grande roda da convivência social girar. Tenho certeza que mesmo você, enquanto
lê essas linhas, já se utilizou desse tipo de critério para avaliar algo em sua
vida. Muitas vezes, em diversas ocasiões, agimos ou avaliamos alguma situação com
base no que ela nos aparentemente apresenta, como um caminho a seguir. O que não
contamos, contudo, é que nem sempre essa escolha pode representar uma atitude
exatamente acertada, principalmente em se tratando de convivência social.
Quantas vezes fui testemunha de casos em que um sujeito é excluído dessa tal
convivência simplesmente por ser diferente (nem falo de mim, pois ainda me acho
um tanto sociável), como em uma entrevista que conduzi alguns meses atrás com
um colega sobre a sua vida. Direto e objetivo, meu camarada contou sem rodeios
que durante sua infância simplesmente era subestimado pelos outros porque era
diferente. Logo, aos olhos da maioria, não ser exatamente igual aos demais gera
imediatamente um uma forma de preconceito que, alimentada por outros fatores
determinantes (suspeitas, medo, hipóteses diversas) pode simplesmente concluir
prematuramente uma ideia, que por sua vez altera toda a realidade.
Imaginando o campo da arte, tão sutil quanto à convivência
social, o batido ditado talvez trabalhe de forma mais evidente. Olhando um
quadro pintado pelo italiano Da Vinci
no século XVI, fica claro para todos que suas obras eram dotadas de uma beleza
e delicadeza inquestionáveis, onde até o mais leigo dos indivíduos não vai
discordar que aquilo se trata de arte. Percorrendo os séculos, vamos parar no
início da década de 10, onde o renomado artista francês Marcel Duchamp nos apresenta um mictório (!) ordinário com uma
pequena assinatura no lado inferior direito, acoplada a uma data de mil
novecentos e dezessete, enquanto críticos da área, dotados de toda a autoridade
julgadora, afirmam que aquilo é a mais genuína arte. Logicamente que, aos
olhares da grande massa da população tal escultura não vai passar de um mero utensílio
sanitário, desprovido de qualquer proporção artística, porém mais uma vez vale
lembrar que as aparências nunca encerram toda a verdade sobre o demonstrado.
Poucos são os que enxergam através da imagem tangível e atingem o verdadeiro
objetivo da peça, que procura uma forma de revolucionar toda a cena cultural
vivida na época, trazendo um novo contexto a ser analisado e discutido. A
‘capa’, neste caso, esconde uma história que conta de forma magnifica uma
relação que existe entre o ser humano e sua própria origem: a capacidade de
questionar a objetividade do que se vê.
Na música, onde tudo é mais subjetivo, muitas vezes a arte
presente na capa de um álbum procura manifestar a essência do trabalho,
trazendo à tona elementos que ajudem a transpor a barreira da dúvida. Torna-se
bastante prazeroso encontrar em certas obras detalhes gráficos que encerram uma
verdade, tornando bastante clara a intenção que está contida no produto
musical. Mas e quando esta arte está tão próxima do conceito do álbum que acaba
não atendendo a expectativa geral, criando certa discussão sobre o que é visto
e o que realmente quer se mostrar? Cria-se uma falha entre a arte e o conteúdo?
Era Julho de 1981 quando, compartilhando o mesmo gosto
musical os jovens Scott Ian e Danny Lilker propuseram-se iniciar uma
banda que tinha como objetivo seguir de perto as tendências que rondavam suas
vidas. Cidadãos de Yonkers, município localizado em Nova Iorque (EUA), os
garotos estavam constantemente cercados pelas rajadas fulminantes do Punkrock, embalado pelas poderosas
bandas BLACK FLAG, X, GERMS
e, claro, RAMONES. O som cru, rápido
e letal destes grupos agia como uma droga na cabeça dos adolescentes, enchendo
suas mentes de ideias que partiam do princípio básico de contestar a realidade
praticada pela sociedade, um verdadeiro turbilhão revolucionário. Não tardou para
que os dois levassem a proposta de criar uma banda adiante, idealizando uma
formação que, ao mesmo tempo mantinha acesa a chama da revolução social e
também adicionava elementos de outros grupos musicais com os quais
simpatizavam.
No início dos anos oitenta o Heavy Metal já tinha completado uma década de existência e já havia
presenciado diversas mudanças em sua formação e execução, deixando muitas
ideias de lado e agregando novos conceitos. O extremismo visual e ideológico dos
primeiros grupos de Punkrock, com
suas roupas desajustadas e moicanos gigantescos, aliados a segunda leva dessa
geração, o Crustpunk, de distorções comportamentais
e velocidade atemporais faziam desses malvados indivíduos que viviam escondidos
nos porões e garagens mundo a fora verdadeiros militantes da música
underground, enquanto o Heavy Metal
absorvia tudo isso e incluía tais manifestações em seu sempre evolutivo
processo de crescimento. Ainda que inimigos no campo da ideologia, os dois
estilos estavam começando a perceber que juntos poderiam chegar mais longe,
contribuindo com ideias que seriam seguidas de perto pelas gerações seguintes,
como uma árvore que, ao deixar seus frutos caírem sob o solo, faz germinar todo
um novo pomar.
A partir de tal receita, que juntava a fúria do Punkrock (em menores proporções, pois o
surgimento do Crossover não estava
destinado ao grupo) com o virtuosismo do Heavy
Metal, os dois rapazes já tinham uma base definida do que iriam tocar,
faltando uma alcunha que caísse bem com o contexto proposto pela dupla. Foi
então que a biologia deu o toque de genialidade, pois foi a partir de um livro
sobre a matéria em questão que foi possível ler um artigo sobre uma substância
bastante agressiva ao sistema nervoso dos seres vivos, além de soar um tanto
maligna. Talvez o ANTHRAX nunca
tivesse sido tão revolucionário desde sua descoberta.
Munidos do conceito musical, e agora amparados por um nome
forte e prático, faltava a parte mais complicada: arrumar a casa isto é, ir a
procura de integrantes para compor o promissor time de jovens sonhadores. Entre
o ano de surgimento da banda e o lançamento do primeiro álbum do grupo, passando por
algumas demos e singles, o entra e sai de integrantes foi intenso sendo que, para
trocar em miúdos, pode-se resumir esta primeira etapa em dois pontos cruciais:
a adição do guitarrista Dan Spitz
(que foi brevemente um integrante do grupo também nova-iorquino OVERKILL) que ajudou substancialmente
para o crescimento do lado rítmico da banda, enquanto dividia a sincronia do
instrumento com Scott Ian; e a troca
do atual baterista Greg D’ Angelo
pelo novato e promissor Charlie Benante,
que tocava de forma absurdamente intensa, abusando do bumbo duplo em seu
instrumento, como pode ser conferido no single
SOLDIERS OF METAL, que apresenta na
faixa-título a capacidade do jovem baterista. O lançamento do material, que foi
disponibilizado em Novembro de 1983 ainda traz a faixa HOWLING FURIES no lado B
do disco, faixa esta que contava ainda com D’
Angelo nas baquetas. Vale lembrar que nesses primeiros anos da década de
oitenta era raríssima alguma banda se valer de um baterista com bumbo duplo
(nem mesmo as bandas mais experientes ousavam incluir um individuo que
dispusesse a tocar um kit com tal aparato).
Como o grupo já contava com o baixista Dan Lilker e o grandalhão Neil
Turbin nos vocais, o passo seguinte seria arrumar um contrato com algum
selo e soltar no mercado o primeiro disco, há muito esperado pela banda e pelos
fãs. Sim, fãs, pois o conjunto já se apresentava em algumas ocasiões promovendo
shows calorosos e o Thrash Metal dava
seus primeiros passos rumo aos áureos anos dourados, aqueles que consagraram
uma legião de bandas extremamente ligadas ao som agressivo e contagiante do
gênero. As sementes do Punckrock e da
primeira geração do Heavy Metal
haviam germinado depressa.
Com um faro aguçado e acreditando firmemente no sucesso
dessa nova vertente musical, o empresário Jon
Zazula tratou de incluir o quinteto em seu cast de jovens bandas, a Metalblade,
que já contava com alguns bons grupos de Metal,
como o rápido power-trio EXCITER, do Canadá, que usava e abusava
do couro e das tachinhas para formar um visual que ficava entre as bandas Punk e os britânicos do JUDAS PRIEST; os conterrâneos do MANOWAR com suas indumentárias medievais
a lá Conan, o bárbaro e histórias
embaladas pelo sentimento do ‘true
banger’; e uma banda formada por jovens rapazes vindos de São Francisco,
com atitude e qualidades que os faria crescer de forma absurda no cenário
underground e comandar o sistema da música pesada desde então: o METALLICA.
O disco em destaque com o encarte aberto. Na foto, o ex-vocalista da banda, Neil Turbin. |
O ímpeto de Zazula
fez com que os jovens fossem de encontro ao empresário e, uma vez tendo fechado
o contrato, a banda seguiu para o Piramid Studios, localizado em Nova Iorque
mesmo, para a gravação de seu primeiro full
lenght. Tal fato ocorreu no final de 1983 e em Fevereiro do ano seguinte o debut da banda já estava pronto e foi
direto para as distribuidoras, chegando às mãos dos metalheads em seguida. O que vemos em FISTFUL OF METAL é uma enxurrada de riffs e solos rápidos e extremamente agressivos, que tiram o fôlego
até mesmo do mais fanático dos fãs de Heavy
Metal. Por ser o primeiro passo profissional do quinteto, é visível que
algumas partes da execução estão amplamente inflamadas pelo sentimento de euforia
que incendiava o grupo, sendo que certas passagens ainda demonstravam certa
imaturidade, principalmente em questão das letras, totalmente voltadas ao
universo adolescente. Tal fato nem de longe podia ser encarado como um problema,
pois ainda hoje esta película nos apresenta temas que só o furor da juventude
pode nos proporcionar, como as fulminantes DEATHRIDER
e METAL THRASHING MAD, onde
encontramos excitação pura, com direito a um andamento frenético dos
instrumentos, principalmente da bateria de Charlie.
A execução inicial da segunda faixa é para poucos, com direito a um alcance
vocal que faz Turbin bater de frente
com o famoso tenor italiano Pavarotti.
Ao passo que as performances ensandecidas dos guitarristas Scott e Dan juntamente com o baixo pujante de Dan Lilker mantêm aquele ar de destruição iminente durante os mais
de trinta e cinco minutos do disco, como bem se pode notar nas faixas SUBJUGATOR, SOLDIERS OF METAL, DEATH
FROM ABOVE e na faixa ANTHRAX,
os momentos mais emblemáticos ficam por conta das canções PANIC, que traz uma dose de virtuosismo bem evidente nos trabalhos
posteriores com uma suntuosa dobradinha de guitarras, bem como na faixa que
encerra o LP, HOWLING FURIES, e no
cover I’M A EIGHTEEN, gravada
originalmente por Alice Cooper na
década de setenta, casando perfeitamente com a proposta do conjunto de explorar
esse lado da juventude, colocando-o a favor da revolução propagada pelo Thrash Metal. Ainda sobrou espaço para
incluir uma faixa instrumental, ACROSS
THE RIVER, que faz uma ponte entre a antepenúltima e última canção da
bolacha, onde os jovens músicos mostram que teriam um futuro promissor,
independente se ele viria daquela banda ou não.
Sob o contexto do batido ditado, o que mais choca neste
inicio de carreira do ANTHRAX não é
a frenética execução das músicas, nem o fato desse ser o único registro com
essa formação (por divergências, Dan
Lilker abandonou a banda após a divulgação do trabalho, sendo seguido pelo
vocalista Neil Turbin logo depois),
que mostram tanto as influencias agressivas das bandas Punks nova-iorquinas como as rupturas de formações que assolavam as
mesmas, mas o fato da capa trazer uma péssima reputação para o álbum. Pois é,
justo a capa, que embala o material e o apresenta para o público quase
crucificou a banda, muito em virtude da ideia central da obra não ter sido bem
assimilada pelo artista Kent Josphe,
que ao desenhar o punho de Neil
calçado pela luva de metal que fielmente o acompanhava durante as apresentações
literalmente aparecer atravessando a boca de um sujeito cabeludo, faz dessa uma
das piores artes de capa já vistas. O assunto ficou tão sério que desde então Charlie passou a inspecionar os
trabalhos posteriores, chegando inclusive a contribuir diretamente para a
concepção de algumas capas da banda. Pelo menos o logo característico do
conjunto, também concebido por Kent
se salvou...
Se julgarmos a obra apenas pela capa, assim como muitas
circunstâncias que se apresentam em nossas vidas, estamos fadados a ignorar
muitos conceitos que podem demostrar-se fundamentais para nossa formação no
futuro. O álbum em questão é tido com um propulsor do Thrash Metal em todo o mundo, tendo sido relançado diversas vezes
nesses últimos vinte e nove anos, provando sua extensa influência no som
pesado, além de ter introduzido indivíduos notáveis na cena (após a saída do ANTHRAX, Neil Turbin fundou e lidera até hoje a banda DEATH RIDERS, enquanto Dan
Lilker integra a banda de Thrash
Metal/ Crossover NUCLEAR ASSALUT,
a qual fundou ainda em 1984, além de ter mantido diversos outros projetos),
ocupando, portanto, um importante posto dentro do universo Heavy Metal. Vale lembrar que, às vezes um velho livro de capa
desbotada guarda maravilhas que só um leitor dedicado consegue explorar. Quem
sabe a partir de um dia as pessoas passem a acompanhar com mais atenção o
conteúdo de certos livros, e não se mantenham presas apenas a suas capas, pois fica
claro que antes de uma boa impressão o conteúdo é o que realmente importa.
O disco só aguardando o momento certo para tocar. |
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