O primeiro disco da banda norte americana Slayer, Show No Mercy, foi lançado em 3 de dezembro de 1983. |
Quando as luzes apagavam e, no meio de um coro ensurdecedor
de uma plateia ensandecida um grupo de jovens subia ao palco com os dizeres “Se vieram aqui para acompanhar um show do
Bom Jovi e seus gemidos, estão no lugar errado!” sabíamos que estávamos
diante de mais uma apresentação dos insolentes do METALLICA. A banda, oriunda da cidade de Los Angeles, sabia como
ninguém manter o público em constante estado de euforia, enquanto notas
agressivas eram talhadas das guitarras Gibson Flying V gêmeas das mãos de James Hetfield e Kirk Hammett, seguidas de perto pelo compasso certeiro do baixo de Cliff Burton e o kit sem bumbo duplo de Lars Ulrich. Durante os primeiros anos
da onda do Power Metal norte americano, os quatro garotos espinhentos
mantinham-se no mais alto lugar do pódio da música pesada, ao passo que as
melodias, cada vez mais rápidas e insanas, migravam para um novo patamar. Após
o lançamento de KILL ‘EM ALL, o METALLICA provava ser o grupo que
puxaria o carro da nova era do som pesado, e a partir de então o Heavy Metal
praticado por todos os grupos do mundo mudaria drasticamente. Era o surgimento
do Thrash Metal.
A história marca o ano de 1983 como o início de toda a
trajetória do som veloz e sem precedentes, visto que o primeiro disco do METALLICA foi lançado nesta época. Para
os fãs, a sonoridade que transbordava das duas faces do vinil de KILL ‘EM ALL atingia os ouvintes tradicionais
de Rock como um bloco de pedra arremessado das mãos de um gigante: certeiro e
fatal. Como toda criação deriva de um ponto, a área compreendida entre o Oceano
Pacífico e o Leste da Califórnia, mais precisamente na região de São Francisco,
representa o pináculo do Thrash Metal, berço de diversos grupos que, cientes ou
não da revolução sonora que estavam desenvolvendo, conceberam o que hoje é
amplamente conhecida como a Thrash Metal Bay Area. Nas raízes deste território
dominado pelas leis do som pesado, bandas como EXODUS, LEGACY, DEATH ANGEL, FORBIDDEN e o próprio METALLICA
(que se mudara para a região no fatídico ano) eram tratadas como verdadeiras
pérolas de um mar de transformações, cujas qualidades musicais entrelaçavam-se
com as características particulares de cada conjunto, moldando toda a cena em
um espiral de influências e personalidades. Enquanto o EXODUS possuía um dos mais prolíficos guitarristas de toda a Bay
Area, Gary Holt, com seus riffs inigualáveis e solos estupendos, e
o mais insano dos vocalistas, Paul Baloff,
dono de um carisma inesgotável e um insultador sem igual, o DEATH ANGEL atacava com uma gangue
formada apenas por parentes filipinos, onde os limites da velocidade se
chocavam com as leis da física e da matemática, e não só uma vez os fãs tinham
a sensação de serem atingidos por um batalhão de guitarras ao invés de apenas
duas nas apresentações do fabuloso quarteto. O LEGACY, que algum tempo depois passaria a atender pelo nome de TESTAMENT, tinha a dupla Eric Peterson e Alex Skolnick como base para a prolífica execução de notas Thrash
Metal, que unidos ao vocal da lenda indígena Chuck Billy possuía um dos mais interessantes times da segunda
escola do Heavy Metal americano, ao passo que o onipotente METALLICA ditava as regras com composições inteligentes e uma
seriedade que de certa forma os fazia únicos em toda São Francisco. Lógico que
existiam outras bandas, como o cáustico VIO-LENCE,
o obcecado MEGADETH de Dave Mustaine, o altamente melódico HEATHEN e o chamativo LÄÄZ ROCKIT, com um visual que unia o
Glam Metal ao Thrash, que proliferavam ideias de rebeldia e revoluções ao inerente
apelo para com a juventude. Era fácil prever que em meio a essa torrente
musical havia espaço para todo tipo de ação e opinião, independente do que os
fãs esperavam ou acreditavam. Enquanto o Thrash Metal tinha como base as notas
aceleradas da NWOBHM (valendo aqui uma observação para diversos grupos, de IRON MAIDEN e SAXON a DIAMON HEAD e BLITZKRIEG), grupos como METALLICA e EXODUS nunca esconderam seu apreço pelos conjuntos britânicos,
sempre citando ou mesmo homenageando seus heróis da música quando possível (Lars e seus comparsas chegaram a lançar
um disco apenas com covers das bandas da NWOBHM, além de executar diversas
canções durante os shows), enquanto que os representantes do Thrash de outras
regiões dos Estados Unidos, como os nova-iorquinos do ANTHRAX e do OVERKILL
primavam por algo mais orientado ao Punk Rock dos RAMONES, DEAD KENNEDYS, GBH e afins, ostentando uma sonoridade
mais ríspida e acelerada, ainda que usassem bastante melodia. Por algum tempo
os britânicos do VENOM, pioneiros do
Metal satânico, ficaram esquecidos durante o curso da história. Idolatrados
como verdadeiros deuses pela molecada headbanger, Cronos e companhia passaram
para meros espectadores em um curto espaço de tempo, enquanto viam bandas menos
requintadas como o DIAMOND HEAD
tornarem-se referência e o Thrash Metal atacar de diferentes frentes,
procurando sempre atingir um ideal cada vez maior e mais abrangente. Ao passo
que letras sobre guerra nuclear e sociedades em busca do poder tomavam cada vez
mais espaço, os reinos negros do inferno foram ficando para trás, como que
varridos para debaixo do tapete. Embora o todo poderoso METALLICA estivesse em evidente estado de êxtase ao ser convidado a
participar da primeira turnê europeia do grupo ao lado da turma de Cronos ainda em 1983, bastou doze meses
para os americanos esquecerem a aventura ao lado dos filhos de Satã e tudo não
passar de uma experiência apagada no borrão da memória.
Mas ainda havia os que admiravam as proezas de Lúcifer na
música, e faziam questão de ver as histórias sobre magia negra recriadas em
forma de notas agressivas e composições inusitadas. O jovem Jeff Hanneman era um exemplo. Tendo
desde berço uma tradição enraizada nas guerras que assolaram o planeta na
primeira metade do século XX, o rapaz de cabelos dourados residente da cidade
de Oakland, na Califórnia, exprimia uma paixão pelos temas pesados, incomuns, e
detestáveis pela maioria das pessoas normais. Enquanto o cidadão padrão
americano tinha como modelo de sociedade uma família firme e estabelecida nas
regras de Deus, pregando o amor e a justiça, Jeff cresceu ouvindo de seus pais, tios e avós histórias da
Primeira e Segunda Guerra Mundiais, onde bravos homens morriam pelos ideais de
uma nação e suas experiências viravam lendas contadas em mesas de bares e
calçadas da vida. Unindo seu forte
desejo sobre as conspirações militares ao grande senso lírico que possuía, logo
Jeff passou a se expressar pela
guitarra, instrumento que o acompanhou durante toda sua existência. Em 1981,
logo após sair da escola, encontrou no inocente Kerry King sua cara
metade da música, e juntos passaram a materializar um ideal para suas vidas.
Exímio instrumentista, Kerry tinha
uma predileção por composições rápidas, e de imediato se deu bem com Jeff, criando uma simbiose com o
parceiro que garantiu uma das mais agressivas duplas de guitarra do Thrash
Metal. Da mente dos dois comparsas, nascia o SLAYER e seu banho de sangue e ódio.
Gravado no Track Record Studios, o álbum foi produzido e capitaneado pela própria banda. A gravação contou com a participação de Bill Metoyer e Brian Slagel, dono da Metal Blade. |
Usando e abusando da proposta inicial do VENOM, de tocar extremamente veloz e
fora do tempo, ainda em 1981 a dupla encontrou no imigrante chileno Tom Araya a voz da banda. Dono de um
timbre que vai do rasgado ao agudo, o rapaz original de Viña Del Mar tinha como
arma um falsete de quebrar janelas, visto por milhares de fãs em muitos anos
durante as apresentações descontroladas do conjunto, além de saber tocar baixo.
No ano seguinte, houve a adição do baterista Dave Lombardo, um cubano nascido em Havana que apresentava uma
técnica sem igual para tocar seu kit. Adepto do bumbo duplo, Dave foi um dos pioneiros do
instrumento, mostrando até hoje como se faz para retirar um som técnico e ao
mesmo tempo instintivo. Com o time formado, algumas apresentações eram marcadas
em bares e casas de show de Los Angeles, sempre recheadas de covers dos mais
diversos grupos, de JUDAS PRIEST a IRON MAIDEN. Curioso notar que,
diferente de praticamente todas as bandas da Bay Area, o SLAYER pouco se linchava para a NWOBHM, com exceção da Donzela De
Ferro, uma verdadeira máquina de riffs
com poder de fogo impossível de ser ignorado, e, lógico, da cria de Cronos. A paixão pelo conjunto de Steve Harris era tamanha que não era
surpresa para ninguém entrar nos pubs de Los Angeles e encontrar Tom esgoelando-se durante as notas
sinuosas de WRATHCHILD, PROWLER e afins, enquanto passeava pela
discografia repulsiva do VENOM.
Foi em uma dessas apresentações viscerais do SLAYER que as coisas começaram a
acontecer. Após receberem um convite para abrir um show do grupo BITCH no tradicional Woodstock Club, em
Los Angeles, a sorte bateu a porta, e o destino se encarregou do resto. Um dos
integrantes do BITCH era amigo do
ex-jornalista musical Brian Slagel,
que fundara recentemente a gravadora underground Metal Blade, e após receber um
convite para acompanhar o show daquela noite, entrou na casa e segurou o queixo
enquanto via Jeff e companhia
executarem um cover irrepreensível de PHANTOM
OF THE OPERA do IRON MAIDEN. A
canção, que era uma das oito faixas tocadas pelo SLAYER (seis eram covers), despertou de imediato o interesse de Brian pelo conjunto, e não tardou para o
mesmo dar um pulo no backstage e
tirar uma letra com o empresário da banda, um moleque amigo dos rapazes
cabeludos. Brian propôs para o
quarteto a oportunidade de tocarem na coletânea METAL MASSACRE III, capitaneada pelo seu selo, e a oferta foi
prontamente aceita. Assim, durante a divulgação do material em 1983, a banda
participou com a canção AGRESSIVE
PERFECTOR, que de imediato caiu nas graças dos fãs de música pesada. Todos
queriam saber mais sobre aqueles rapazes que tocavam como o METALLICA, usavam roupas de couro como o
JUDAS PRIEST e tinham nas letras
refrãos que se assimilavam ao VENOM.
Com o sucesso da coletânea, Brian tinha a certeza de que não perderia tempo ao assinar um contrato
com os rapazes, contudo, mesmo ciente da pepita que tinha diante dos seus
olhos, não tinha em mãos a verba necessária para custear um disco completo só
com a banda. Foi preciso apelar. Tom,
que tinha um bico em um hospital prestando serviços como terapeuta respiratório
juntou cada centavo que podia, enquanto Kerry
conseguiu um empréstimo com seu pai para ajudar a segurar a barra de uma
gravação profissional. Com a nota em mãos, Brian
conseguiu agendar uma data no Track Record Studios, localizado em North
Hollywood, em Los Angeles, e foi na raça que o conjunto rumou para o local num
fim de tarde de novembro para registrar as composições de seu primeiro full lenght.
Ainda que houvesse o lugar e o dinheiro para registrarem as
faixas, o custo do local era alto para os padrões da Metal Blade, tanto que Brian se viu forçado a colocar os
rapazes em estúdio durante a madrugada e gravar tudo o mais rápido possível.
Com a ajuda de Bill Metoyer e da
própria banda, em um prazo de oito horas tudo estava captado, registrado e
guardado nos rolos de fita, e o que se viu três semanas depois foi o estopim de
algo mágico.
O álbum é um clássico do Thrash Metal, rivalizando com o disco Kill 'Em All, do Metallica. É apontado pelos fãs como o precursor do gênero Thrash Metal, ao lado da obra de Lars e companhia. |
Como dito nas primeiras linhas deste texto, o METALLICA entrava no palco e tocava com
afinco. Logo após uma apresentação segura do SLAYER, que na época não contava com seu disco lançado, Lars e companhia faziam a pista tremer e
chacoalhar, e algumas línguas ásperas diziam que Jeff e sua turma se tocaram da atitude contida em KILL ‘EM ALL. Muitos afirmam que foi a
partir dessas apresentações que o SLAYER começou a acelerar seu som para
competir com o METALLICA, e uma
disputa por atenção e velocidade começou a surgir. Seja como for, se James estava em vantagem ao se dirigir
para a plateia com extrema autoridade enquanto tocava as notas da complexa THE FOUR HORSEMEN, o SLAYER logo provaria que estava disposto
a nivelar as diferenças. Apoiando-se em uma apresentação quase teatral, como
fazia o IRON MAIDEN e o MERCYFUL FATE, Tom subia ao palco acompanhado de seus companheiros em meio a uma
cortina de fumaça, todos devidamente trajados com couro e tachinhas. Kerry usava em seu punho esquerdo uma
braçadeira estúpida com pregos de mais de dez centímetros, abusando de uma
autoridade até então não explorada por nenhuma banda de Thrash Metal, enquanto Jeff trazia uma enorme cruz invertida, a
qual colocava num canto do palco e sempre expunha durante as pausas entre as
músicas. A partir do dia 3 de dezembro de 1983 o SLAYER possuía sua própria lista de temas e não mais abusava das
canções alheias para preencher suas apresentações, ainda que WITCHING HOUR do VENOM fosse quase obrigatória nas execuções do quarteto.
Atendendo por SHOW NO
MERCY, o primeiro disco da banda peca pela inocência, além de estar
bastante calcado na sonoridade dos pilares britânicos, ainda que o conjunto
dirigisse as composições a 150 km por hora. Mesmo assim, é impossível não
perceber o furor jovial que preenche os trinta e cinco minutos da película, que
esbanja adrenalina e vontade. A capa, desenhada por Lawrence R. Reed mostra uma ilustração bizarra de um demônio com
cabeça de bode empunhando uma espada descomunal na mão esquerda enquanto segura
a ponta da capa com a mão direita, representando bem o mundo de fantasias que
habitava a mente dos jovens integrantes do conjunto. Das dez canções presentes
no álbum, o destaque fica para a arrepiante BLACK MAGIC, que mostra riffs
cortantes de Jeff andando em perfeita
sintonia com os solos de Kerry, um
adepto da distorção e notas dedilhadas. As canções TORMENTOR e CRIONICS
mostram o lado melódico herdado da Donzela, ainda que todo o disco tenha uma
pitada de IRON MAIDEN e JUDAS PRIEST, enquanto o lado satânico
explícito fica por conta da trinca EVIL
HAS NO BOUNDARIES, THE ANTICHRIST
(letra pesada para os padrões da época) e DIE
BY THE SWORD (uma gargalhada maliciosa de Tom é a cereja do bolo, digna dos bons filmes de terror), com um
apelo altamente diabólico e melodias grudentas. Mesmo que as faixas invistam em letras simplórias e conteúdo
primitivo, é legal perceber que houve criatividade em alguns momentos, como na
primeira música da trinca, onde Gene Hoglan
aparece para dar uma mão ao conjunto. Gene,
que foi baterista da banda de Thrash Metal californiana DARK ANGEL, estava no estúdio quando Tom preparou-se para registrar os vocais da canção citada e deu uma
dica para Jeff e Kerry. Ele pediu para todo mundo, a banda e as demais pessoas no
estúdio, gritarem a palavra “evil!” durante o refrão para deixa-lo mais
empolgante. Como resultado, não só o som de guitarra de Jeff em fade in logo no
início da faixa chama a atenção, mas também todo o trabalho vocal, especialmente
na parte do coro. Muito bom.
Ainda tem as composições FIGHT TILL DEATH, METAL
STORM/ FACE THE SLAYER, THE FINAL
COMMAND e SHOW NO MERCY que
encerra o trabalho, mas estas músicas seguem a mesma linha, sem nada a
acrescentar, mas também não deixam o pique cair. Para um primeiro registro
estava de bom tamanho e é certeza que fã nenhum reclamou do material, tanto é
verdade que não durou para o disco se tornar o mais pedido da Metal Blade,
contabilizando para Brian e a banda a
venda de mais de 40.000 cópias do trabalho.
O SLAYER estava
no caminho certo, abraçando tudo o que as demais bandas haviam deixado para
trás. A maior peculiaridade do grupo era sua base musical, que casava muito bem
as notas destrutivas e ultra velozes com a temática carregada e blasfema,
tornando a banda uma alegoria exclusiva no Thrash Metal, mesmo não pertencendo
à panelinha da Bay Area. Porém, ainda havia detalhes para acertar. Vindo da
Califórnia, o SLAYER ainda tinha em
sua genética algo dos conjuntos Hard/ Glam dos conterrâneos do MÖTLEY CRÜE e RATT, os quais qualquer fã de Thrash Metal repudiava com ódio
xiita. Durante as apresentações, era costume dos rapazes pintar os olhos com
uma grossa camada de maquiagem que os deixava bastante vistosos, mesmo que a
intenção fosse agir como um grupo de guerra ou como os jogadores de futebol
americano, como se defendia Jeff.
Bastou uma apresentação em São Francisco ao lado de SAVAGE GRACE, LÄÄZ ROCKIT
e da lenda EXODUS para o quarteto abandonar
a tinta na cara, após sofrer uma enorme chacota da plateia presente. Como é que
se diz? Vivendo e aprendendo...
Mesmo hoje, mais de trinta anos após o lançamento do
clássico LP, vale a pena conferir os primeiros passos dos mestres dos reinos
demoníacos. O SLAYER provou que
tinha espaço para suas propostas, e a expansão de seu nicho era apenas uma
questão de tempo. Havia muito a ser explorado no fértil território da música
pesada, especialmente no recém-descoberto Thrash Metal, e não fazia mal deixar
que muitos seguissem os passos deixados pelo METALLICA, afinal, é muito mais divertido fazer a própria história
acontecer, não é?
A banda mostrou que tinha futuro. O disco tornou-se o mais vendido da Metal Blade, com cerca de 40.000 distribuídas. Ninguém duvidava da capacidade do quarteto. |
Escrito em 02 de fevereiro de 2014 com início às 20hrs. e
55min.
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