Um dos mais marcantes discos da década de setenta: Overkill do inigualável Motörhead. |
Imagina só... E se, de repente, o mundo inteiro perdesse o
dinamismo, como se houvesse uma só lei a ser seguida, baseada em uma conduta
sócio-política que prejulgasse e colocasse na mesma ótica a cultura, o
pensamento e a opinião de uma só vez? Não haveria liberdade de expressão, voz
de ação ou mesmo nenhuma atitude que demonstrasse qualquer traço de
comportamento ou personalidade que poderia criar algum contraste entre as
pessoas. Do ponto de vista global, os dias de hoje apresentam uma tendência
amplamente inclinada ao politicamente correto, a fim de propagar uma cortina de
ordem na sociedade. Há quem diga que nosso cotidiano está diretamente ligado ao
momento em que o mundo passa, ignorando completamente o passado, enquanto
outros veem como causa destes “dias de paz e tranquilidade” ao que o planeta
vem passando nesses últimos anos à necessidade de uma ferramenta organizadora
(necessidade esta gerada em resposta as crises econômicas, guerras e conflitos
de interesse que formaram o cenário de praticamente todo o século passado),
esquecendo-se de compreender que mesmo sob esta era de propagação da moral o
ponto de vista de cada indivíduo ainda permanece ativo e conceitual.
Se no planeta em geral este paradigma encontra-se sutil, o
mesmo não se pode falar dos aspectos culturais, onde é cada vez mais evidente
que há, de fato, um sistema a colocar tudo em um determinado padrão de conduta.
O conjunto de regras que determinam religião, política, senso crítico, enfim,
toda e qualquer forma de expressão estão sendo julgados da mesma forma,
partindo do mesmo princípio. Cresce o controle absoluto, diminuem as
características e particularidades de cada um, reflexos de suas ações e
opiniões. Contudo, ainda pode-se contar com a irreverência e genialidade de
certos indivíduos, cujos exemplos, embora criados haja algumas décadas, ainda
contribuem para ampliar esta ideia de liberdade.
Um desses sujeitos é Ian
Fraiser Kilmister (ou Lemmy Kilmister),
que desde o início dos anos setenta já demostrava fortes traços de sua
personalidade única. Debochado, canastrão, mulherengo e frequentemente chapado
de álcool e LSD, Lemmy foi chutado de
sua ex-banda, o espacial HAWKWIND
por comportamentos hostis e viajar constantemente carregado de drogas (ele foi
despejado do conjunto durante a turnê no Canadá). Após o episódio, propôs para
si próprio uma única regra: “não serei
mais expulso de banda nenhuma! Criarei a minha própria banda para decidir se
chutarei os outros ou não!” E assim, em 1975 deu origem a banda BASTARDS.
O grupo originário da capital inglesa contava inicialmente
com Lemmy nos vocais e no baixo,
auxiliado por Larry Wallis que tocava
guitarra e cantava em algumas músicas eventuais, além de Lucas Fox que cuidava da bateria. Os primeiros trabalhos com essa
formação ainda mostravam certa proximidade com o conteúdo da sua ex-banda,
contudo já era possível sentir uma similaridade com o material dos anos posteriores
que consagrariam o rebelde Ian em ícone de uma geração. Os ensaios do grupo
eram frequentemente regados a muita bebida e drogas, e não demorou para Lemmy mudar o nome da banda para algo
mais, digamos, condizente com sua realidade. Saía assim o título BASTARDS para entrar o único e
histórico MOTÖRHEAD, cujo significado
da palavra está próximo a algo como “viciado em anfetaminas” e já havia sido
criada por Lemmy em uma faixa para o HAWKWIND (que na ocasião não chegou a
ser lançada nos álbuns do conjunto).
Após um contrato conturbado com o selo United Artist
Records, o trio preparou-se para gravar o que seria o primeiro disco da banda,
contudo mudanças aconteceram no curso da história. Lemmy, que já andava insatisfeito com a performance de Fox (ele dizia que faltava pegada e
dinâmica na forma de tocar do baterista) despejou o sujeito, contando com o
auxílio de um jovem que conhecera há algum tempo, o seminal Philty Animal Taylor para concluir as
gravações. Tão descarado, beberrão e debochado quanto Lemmy, Taylor era dono de uma forma exclusiva de tocar bateria, que
incorporava elementos de Classic Rock e Punk Rock na medida certa, sendo que o
baixinho caiu como uma luva no conjunto. Com a conclusão das músicas, o disco estava
pronto para sair do estúdio quando a gravadora interveio e alegou não gostar do
resultado da película, engavetando o material que só veria a luz do dia em
1979. Após o ocorrido Lemmy e seus
comparsas continuaram a aventurar-se nos pubs londrinos até que em 1976 ficou
decidido que a banda passaria a contar com mais um guitarrista. Foi ai que
entrou a presença do ilustre Fast Eddie
Clarke, que tocava notas ferozes numa linha de Blues Rock lisérgico. Foi a
deixa para Larry Wallis deixar o
conjunto, e a partir dai o trio mais famoso do som rápido, sujo e agressivo
começou a sua excitante jornada nas terras selvagens e opressoras das décadas pós-guerra.
Munido de um visual que combinava cinto de balas, camisas de
cowboy e chapéus de faroeste, além de
jaquetas de couro e patches, Lemmy e
sua banda conseguiram soltar um título na praça, que atendia simplesmente pelo
nome de MOTÖRHEAD (desta feita pelo
estranho selo Chiswick) e trazia uma sonoridade abafada, carregada de distorção
e contando com covers do HAWKWIND,
de certa forma ainda uma sombra na imaginação Lemmy. O trabalho original de 1977 apresentou pela primeira vez a famosa
mascote Snaggletooth criada por Joe Petagno (famoso atualmente por
conceber capas para diversos grupos como SWEET,
NAZARETH, KRISIUN, MARDUK entre
outros), mas não foi bem digerido pelo público, embora o apelo Punk já fosse
uma realidade em Londres e o grupo atendia perfeitamente aquela demanda. Ainda
não tinha sido daquela vez que os “bastardos do rock” chegariam ao posto
merecido.
A versão de 2005 disponibilizada pela Sanctuary Records. |
Contudo, o mundo pode oprimir a todos, mas só derruba os
fracos. Era final de 1978 quando, mais uma vez, o trio arregaçava as mangas e
encararia uma nova jornada ao estúdio, dessa vez com experiência e contando com
um bom selo para assessorá-los (o já famoso Bronze Records). Gravado no Roundhouse
Studios e Sound Development entre os meses de dezembro de 1978 e janeiro de
1979 e valendo-se da produção de Jimmy Miller,
OVERKILL pode não ser o primeiro disco
a apresentar a clássica formação em ação, mas sem dúvida é o trabalho que abriu
as portas do cenário fonográfico para o trio. Rápido, agressivo, certeiro e
letal, o dia 24 de março marca a data de lançamento do terceiro trabalho da
banda que brinda o ouvinte com uma audição visceral e ao mesmo tempo
contagiante e até agradável (escute a bem sacada faixa I WONT PAY YOUR PRICE e concorde), com instrumental de arrancar
elogios do mais cético crítico e letras carregadas de verdade nua e crua. A
obra já começa pela faixa título, que pode ser perfeitamente comparada a uma
marcha para a guerra. O trabalho de Taylor nas baquetas faz da música uma verdadeira
máquina de destruição, acompanhada pelas notas precisas de Eddie e do baixo martelado de Lemmy,
enquanto o mau caráter destila suas proezas numa vocalização que faria Johnny Cash encher-se de orgulho por ser
influência desse malicioso rapaz. As canções são dotadas de um sentimento que se
desvia das mitologias constantes dos outros grupos de Heavy Metal, ou do
ocultismo propagado pelo BLACK SABBATH
durante muitos anos, agindo como um catalizador da realidade, desnudando verdadeiras
desventuras pessoais de Lemmy, o
compositor da banda, como em STAY CLEAN,
que fala abertamente de manter-se firme em sua conduta quanto às tendências do
mundo (sobretudo religião e política, encaradas como verdadeiras instituições
de manipulação de massa). Não bastasse o mesmo Lemmy ser dotado de uma aura carismática inabalável (o disco ainda
conta com a faixa I’LL BE YOUR SISTER
que fala de amor, mas de uma forma bem mais carnal e sincera), é incrível
perceber como a marca de sua banda criou verdadeiros pilares para diversos
gêneros musicais, do Punk Rock ao Black Metal, sendo correto afirmar que uma
grande fatia dos jovens que viviam a primavera dos anos dourados do Heavy Metal
literalmente abraçaram sua cria como uma força vitalizadora, um refúgio para
suas mentes exaustas da opressão psicológica regida pela sociedade puritana. A potência
de faixas marcantes, como NO CLASS (que
posteriormente contou com uma magistral versão cover do grupo PLASMATICS, da lendária Wendy O. Williams), DAMAGE CASE (esta gravada em parceria com o músico e compositor Mick Farren, amigo de longa data de Lemmy), METROPOLIS e TEAR YA DOWN
(onde o trabalho das seis cordas de Eddie
aliado ao motor da bateria de Taylor
deixa clara uma raça sem igual) fazem do conteúdo do álbum algo marcante, sobretudo
para a atitude de Lemmy, que enfim
foge da sombra do espacial HAWKWIND.
Foi seu salto para trabalhos fenomenais que se seguiram, onde a veia Rock’n’Roll
enfim se libertava e deixava bem claro que o mainstream, seja lá o que fosse, teria que empurrar o MOTÖRHEAD goela abaixo e aceitar sua
fúria incontrolável e puramente genuína, uma fusão perfeita do Rock com o Punk
e o Heavy Metal.
CAPRICORN, uma
das composições que mescla bem os domínios dos fatos com a realidade, mostra
claramente toda a discussão sobre opinião aberta nestas linhas, onde a conduta
de um indivíduo parte unicamente dele mesmo - o âmbito social gera apenas
influência superficial em suas atitudes. LIMB
FOR LIMB encerra o trabalho apresentando um solo de guitarra executado pelo
próprio Lemmy (o da segunda parte da
faixa), dividindo as seis cordas com Eddie
num frenesi quase hipnótico. Não há dúvidas: a tribo metalhead estava diante de um trabalho realmente especial, que em
apenas trinta e cinco minutos ficou conhecido como um dos mais rítmicos, certeiros
e pesados de toda a década de setenta.
Foi um estouro: o disco caiu nas graças do público e enfim a
banda pode desfrutar de uma cena mais favorável as suas atitudes. Jovens de
diversos países da Europa chacoalhavam seus corpos e cabelos num turbilhão de
euforia, marcados pelo romper frenético das quatro cordas do velho Rickenbacker
de Lemmy, que não perdia a mão tanto
em relação ao público que já gritava seu nome como nas composições sobre sexo,
drogas e vida livre, como pode ser acompanhado durante e turnê que promovia o
lançamento do álbum, que acabou passando pelo tradicional Paris Theatre em
Londres, onde o trio executou sete faixas desse álbum para uma plateia ávida e
enlouquecida.
Longe de ser possuir um apelo físico sexual (Lemmy tinha berrugas na cara, além de
velhas e desgastadas tatuagens e dentes faltando, enquanto Eddie mais parecia um raquítico empunhando uma guitarra e Taylor era um lunático sem limites), a
banda ficou notória por colecionar aventuras pelo solo inglês, divertindo-se
com garotas de toda a parte e de todas as nações. Os rumos tomados pelos “bastardos
do rock” serviram de base para toda a geração de bandas das décadas seguintes,
em especial as dos anos oitenta, que de fato viam no MOTÖRHEAD uma miríade de oportunidades de apresentar um trabalho
coeso, simples e tecnicamente pujante. Algumas composições de OVERKILL são executadas pelo grupo até
hoje, como a faixa título, CAPRICORN e
METROPOLIS.
Como mostra de poder das músicas, o disco foi relançado
através dos anos, sendo a versão em CD do selo Sanctuary Records a mais
completa. O trabalho vem em uma versão dupla, onde o disco bônus apresenta os B sides de todas as faixas regulares do
álbum. Nele constam muitas versões da canção LOUIE LOUIE (um cover do cantor de Blues afro americano Richard Berry) além de outras versões
para TEAR YA DOWN e LIKE A NIGHTMARE, que serviram para
completar os singles OVERKILL e NO CLASS para alavancar o lançamento do
álbum no final da década de setenta. O disco ainda conta com as apresentações
no programa de rádio da BBC John Peel Sessions de 1978 além do concerto
ocorrido em 1979 promovido pela mesma estação.
Um registro desses de mais de três décadas serve como uma
aula de personalidade, pois se antigamente era motivo de orgulho possuir senso
crítico e uma opinião formada sobre a própria vida e como ela caminha, será que
hoje as atitudes de cada um são encaradas dessa maneira? Chegamos mesmo ao
ponto em que é muito mais simples ou cômodo permitir que a massa pense e aja
por nós, sem sequer questionar o motivo ou analisar suas consequências? O mundo
atual, se encarado pelo âmago social está tornando-se tranquilo e satisfeito...
Mas e sua mente, também está?
A versão nacional apresenta formato duplo. Muito prático! |
Escrito em 28/12/2013 às 18hrs. e 42min.