domingo, 22 de dezembro de 2013

Welcome To Hell - Venom

O famigerado disco de estréia da banda britânica Venom, Welcome To Hell.
Há um ditado antigo que diz: “uma maçã podre em um cesto de maçãs boas pode estragar todas as demais”. Essa frase, comparando a maçã podre a toda e qualquer coisa que esteja em uma condição contrária a da maioria, aborda amplamente a importância que se dá ao correto em relação ao suspeito, ao duvidoso ou ao discutível. Quando Eva, persuadida pelo espírito diabólico da serpente mordeu o fruto proibido e o ofereceu a Adão, ao qual após consumi-lo foi exposto a verdade do mundo carnal e impuro, ambos foram expulsos por Deus do Paraíso. Neste caso a maçã tornou-se a representação do pecado, do incorreto; contudo poucos conseguem enxergar que o mal não estava no fruto e sim na serpente, metaforicamente encarada como a eterna criatura que envenena a alma dos homens. Afinal, se a maçã fosse mesmo a fonte do erro, por qual motivo Deus a teria colocado em destaque no Paraíso? Terão aqueles que podem dizer “ah, mas era a vontade de Deus que Adão e Eva não tocassem no fruto, quer fosse o argumento”. Humanos minha gente, humanos...
A questão do certo e errado aborda diferentes dimensões, conforme seu contexto é analisado e discutido pelos mais variados círculos sociais. O que pode ser correto para uns pode não ser para outros, porém algo nesta questão é motivo de total concordância: o incorreto, sob qualquer ótica, deve ser extirpado, eliminado, inaceitável. Seria este o modo correto de lidar com todo o pecado e incoerência do mundo? Vejamos...
Era final de 1978 quando, na cidade britânica de Newcastle (divisa com a Escócia), Conrad Lant foi convidado a participar de um grupo cuja pretensão era executar covers de uma certa banda que fazia sucesso por todo o país. Nesse fim de década não tinha pra ninguém: o BLACK SABBATH andava mal das pernas, o MOTÖRHEAD ainda era considerado um grupo promissor (além de ainda não ter lançado o seminal ACE OF SPADES), algumas poucas bandas de Classic Rock já não pisavam fundo nas composições e o JUDAS PRIEST era a bola da vez, levando multidões à loucura com suas notas rápidas, pesadas e furiosas enquanto era objeto de desejo e admiração de qualquer jovem cabeludo. Do outro lado tinha o Punkrock que não dava trégua para a sociedade puritana e conservadora, desafiando as autoridades com canções de liberdade e anarquia, enquanto a nobreza ficava de cabelos em pé (não tanto quanto os moicanos multicoloridos da juventude vigente, mas a ideia já estava lançada). A banda de covers chamava-se GUILLOTINE e na época contava com o ex OBERON Clive Archer nos vocais (e sua sugestiva alcunha de Jesus Christ) e Alan Winston no baixo, sendo que Conrad deixou de lado sua banda DWARFSATR para tocar guitarra com os rapazes. Algum tempo depois, já em 1979, Archer foi acompanhar um show do verdadeiro JUDAS PRIEST e durante o evento encontrou-se com Anthony Bray, seu parceiro que tocava bateria na banda OBERON, e após uma conversa rápida bastou um convite meio informal para recrutarem o rapaz e coloca-lo sob o comando das baquetas, enquanto ele alucinava-se ao som de HELL BENT FOR LEATHER e afins.
Algum tempo depois Winston deixou a banda, sendo que Conrad passou para o baixo e Jeffrey Dunn assumiu as seis cordas do grupo. Nas palavras de Conrad “Jeff vai negar a vida inteira que aquele grupo não era de músicas cover do JUDAS PRIEST, sendo que até seu visual na época lembrava propositalmente o de KK Downing (guitarrista e fundador do JUDAS PRIEST), mas o que podíamos fazer? Éramos uma banda cover e ponto”.
Nesta época, Conrad trabalhava como assistente de som no Impulse Studios (de propriedade da Neat Records que, como irão ver mais adiante, teve muita importância para Conrad e seus camaradas), e entre uma atividade rotineira e outra, conseguia um espaço para gravar o som de sua trupe. O “barulho”, por assim dizer, era registrado em um gravador velho que Conrad possuía, e logicamente o resultado daquilo tudo era péssimo, contudo esses foram os primeiros passos rumo a originalidade que as bandas tanto faziam questão naqueles anos dourados (bons tempos...), sendo que em uma dessas gravações Conrad acabou assumindo os vocais principais, o que causou uma reviravolta drástica no grupo. Em consenso geral, todos acharam que a voz de Conrad combinava mais com a proposta do conjunto, e Clive Archer deixou a banda sem ressentimentos. Esse período casou com o momento em que os jovens passaram a trabalhar em composições próprias, usando e abusando de um conceito pra lá de polêmico e radical que, sem exageros, mudaria a forma como todo o planeta encararia o som pesado.
Para acompanhar o novo momento, Conrad propôs que os demais integrantes usassem alcunhas mais adequadas com a recém-assumida proposta, que unia sem cerimônias o som ríspido e cru do Punkrock com uma temática explicitamente satânica e ocultista. Sim meus caros, os anos oitenta estavam batendo na porta, e junto com eles tanto o rebatizado VENOM como toda a NWOBHM já davam as primeiras notas do que viria na próxima década. Sendo assim, Conrad Lant passou a se chamar Cronos, que segundo a mitologia grega era um titã anterior a era dos deuses do Olimpo; Jeffrey Dunn tornou-se Mantas, um dos demônios relacionados ao crepúsculo (não o filme estúpido de recentemente com aqueles vampiros sem sentido e tal) e Anthony Bray tornou-se Abaddon, ou de acordo com a língua hebraica o “anjo do abismo”. Devidamente apresentados, os rapazes conseguiram a ajuda do engenheiro de som Mickey Sweeney que topou trabalhar de graça (!) na gravação da demo intitulada simplesmente de DEMON (ou ANGEL DUST como alguns gostam de chamar), apresentando as faixas ANGEL DUST, RAISE THE DEAD e RED LIGHT FEVER. Lançada em 29 de abril de 1980, Cronos não mediu esforços para fazer essa demo circular, distribuindo para todo mundo que conhecia e que possuía um mínimo de influência no mercado fonográfico, até que um dia uma dessas cópias foi parar no colo de Geoff Barton, influente jornalista e crítico musical da revista Sounds que de cara gostou do que ouviu e virou fã. Mais tarde Geoff ficaria famoso como um dos fundadores da tradicional revista de Rock e Metal Kerrang!
Graças ao seu trabalho extensivo de divulgação, Geoff angariou certa notoriedade para o trio, que passou inclusive a gozar de certo prestígio entre algumas parcelas da mídia especializada. De alguma maneira a baboseira satânica aliada aos vocais rasgados e o instrumental sujo e saturado de reverb do VENOM chamou a atenção do público, que aos poucos foi aderindo aquele novo conjunto que gritava aos quatro ventos, sem cerimônia, estarem dispostos a serem mais barulhentos que o MOTÖRHEAD, usar mais tachinhas e couro que o JUDAS PRIEST, ser mais satânico que o BLACK SABBATH e ter mais pirotecnia em seus shows que o KISS.
Diante de tantos apelos, tanto pela parte do público como da imprensa, a Neat Records tratou de assinar um contrato com a banda e logo em seguida trancou os rapazes no mesmo Impulse Studios para a gravação de mais uma demo, dessa vez sob a supervisão do conhecido Keith Nichol. O que ninguém esperava era que, seis dias após a gravação das canções que iriam compor o novo material, tudo seria mixado, reunido e lançado como um disco, ou seja, um full lenght (o primeiro da banda, por sinal). Assim, ficou de certa forma fácil presumir o porquê de naquele dia 12 de janeiro de 1981 o cenário da música pesada estava diante de uma parede de som que mais parecida com um estalo do apocalipse que uma banda formada por jovens competentes.
O disco e seu encarte aberto. Contém informações preciosas sobre o álbum.
Não havia dúvidas: WELCOME TO HELL chegou abalando as estruturas do som pesado, virando ao avesso tudo o que era conhecido até então. Peso, atitude, inovação, originalidade e pioneirismo; os mais próximos ao grupo não economizavam nos elogios e apontaram aquele disco como a mais pesada e blasfema obra da música de todos os tempos. Era sabido que o satanismo já havia dado as caras através de grupos como ALICE COOPER, BLACK WIDOW e até mesmo o maior de todos, BLACK SABBATH, mas nunca o diabo tinha sido arrancado das profundezas das trevas de forma tão brutal e nítida para se tornar protagonista do Rock como foi feito por Cronos e os demais.
Não tinha mais volta. Ao escutar canções como SCHIZO, LIVE LIKE NA ANGEL (DIE LIKE A DEVIL), IN LEAGUE WITH SATAN, WITCHING HOUR ou ONE THOUSAND DAYS IN SODOM é impossível ficar estático diante da força do “bulldozer bass” de Cronos (técnica de som descoberta por Conrad após o mesmo plugar seu baixo em um amplificador de guitarra), enquanto Mantas tenta extrair o melhor de seu instrumento numa tempestade de notas abafadas e Abaddon surra seu kit com uma ira devastadora. Em praticamente quarenta minutos estava concebido não só o primeiro disco do grupo, mas o precursor de todo um novo gênero musical, o famigerado Black Metal, dotado de forças que desafiavam o sobrenatural e afugentavam qualquer puritano ou conservador. Do ponto de vista energético, é um disco que exala a potência da NWOBHM, mas se for falar da técnica...
Entramos em um momento curioso do VENOM. Amada pelos fãs, a obra é repleta de reverb e sonorização crua e direta. Sob uma massa sonora maciça e contando com os berros de Cronos, a impressão que dá é a de que realmente não houve um mínimo de preocupação com a produção do disco (escute SONS OF SATAN e POISON para tirar suas próprias conclusões), o que rendeu comentários nada amistosos da grande mídia e principalmente das outras bandas, que apontavam o grupo como pífio e carente de habilidade.
Tal argumento não estava longe da verdade. Embora a película tente extrair o que havia de mais criativo e original no trio (ANGEL DUST e a instrumental MAYHEM WITH MERCY procuram preencher essa lacuna), realmente a falta de entrosamento com os instrumentos tornava toda a audição uma verdadeira aventura (talvez a faixa título tenha um cuidado um pouco maior), contudo engana-se quem pensa que a carência técnica culmina em um trabalho pobre e digno do esquecimento. Segundo Cronos, a banda costumava ensaiar na igreja metodista de Newcastle a qual era alugada aos sábados pelo módico preço de cinco libras. Dentro do relato do vocalista, nos ensaios da banda o baterista Abaddon costumava detonar alguns fogos de artifício, e a fumaça vermelha que escapava pelas janelas da igreja assustava os vizinhos que frequentemente ligavam para o corpo de bombeiros. Tudo isso ajudava o trio a ir melhorando o caráter técnico de seu ríspido e exclusivo som, que provaria sua verdadeira força apenas na década seguinte, com o nascimento da segunda escola do Black Metal, (principalmente nos países escandinavos) fortemente influenciada pelos pentagramas desenhados por Cronos nas capas de seus discos ou pelas letras satânicas e sem nenhum pudor.
É indiscutível a importância e o impacto que o VENOM possui na música pesada. Sua influência é tamanha que é perfeitamente aceitável inclui-la no rol de grandes nomes do gênero, como os já citados BLACK SABBATH, MOTÖRHEAD, JUDAS PRIEST ou o METALLICA e o IRON MAIDEN. Há ainda o fato de terem desenvolvido o embrião do que seria o Thrash e o Death Metal em todo o planeta, levando os headbangers a uma jornada dimensional que se tornaria obrigatória para qualquer indivíduo que tenha coragem de se aventurar pelos domínios do som extremo, ao embalo de muito gelo seco, couro e pirotecnia.
Muitas bandas podem dizer que tiveram o privilégio de terem feito parte de uma época especial. Algumas outras podem dizer que influenciaram uma infinidade de grupos com seus discos e composições. Mas são poucas as que podem bater no peito e afirmar que criam um estilo, algo realmente difícil e raro de conceber. O VENOM conseguiu. Foi mais longe que milhares de conjuntos que pisaram nesse planeta, arrebentando com os portões do inferno e trazendo uma verdadeira avalanche do apocalipse para os lares das pessoas. De ridículos e exagerados passaram para a grande sensação do Metal britânico, e não faltam histórias sobre esse icônico grupo.
Durante os anos o disco recebeu alguns relançamentos, valendo destacar a versão da Combat Records que apresenta as faixas bônus IN NOMINE SATANAS e BURSTING OUT, além da versão de 2002 da Castle Music/ Sanctuary que traz o CD em formato slipcase e apresenta dez versões demos e singles de diversas faixas do disco.
Ao diluir conceitos satânicos e blasfemos em um mundo cada vez mais hipócrita, o VENOM nos permite ainda hoje, mais de trinta anos após o lançamento desta obra, desafiar os limites do certo e errado, numa forma de encontrar uma razão para a eterna discussão entre o correto e incorreto. Para concluir, se a música pesada é a árvore que se encontra no centro do jardim do Éden, o VENOM sem sombra de dúvidas é a maçã podre que todo cesto deveria ter.

O disco pronto pra fazer barulho!
 Escrito em 22/12/2013 às 14hrs. e 32min.

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