O famigerado disco de estréia da banda britânica Venom, Welcome To Hell. |
Há um ditado antigo que diz: “uma maçã podre em um cesto de
maçãs boas pode estragar todas as demais”. Essa frase, comparando a maçã podre
a toda e qualquer coisa que esteja em uma condição contrária a da maioria,
aborda amplamente a importância que se dá ao correto em relação ao suspeito, ao
duvidoso ou ao discutível. Quando Eva,
persuadida pelo espírito diabólico da serpente mordeu o fruto proibido e o
ofereceu a Adão, ao qual após
consumi-lo foi exposto a verdade do mundo carnal e impuro, ambos foram expulsos
por Deus do Paraíso. Neste caso a maçã tornou-se a representação do pecado, do
incorreto; contudo poucos conseguem enxergar que o mal não estava no fruto e
sim na serpente, metaforicamente encarada como a eterna criatura que envenena a
alma dos homens. Afinal, se a maçã fosse mesmo a fonte do erro, por qual motivo
Deus a teria colocado em destaque no Paraíso? Terão aqueles que podem dizer “ah,
mas era a vontade de Deus que Adão e Eva não tocassem no fruto, quer fosse o
argumento”. Humanos minha gente, humanos...
A questão do certo e errado aborda diferentes dimensões,
conforme seu contexto é analisado e discutido pelos mais variados círculos
sociais. O que pode ser correto para uns pode não ser para outros, porém algo
nesta questão é motivo de total concordância: o incorreto, sob qualquer ótica,
deve ser extirpado, eliminado, inaceitável. Seria este o modo correto de lidar
com todo o pecado e incoerência do mundo? Vejamos...
Era final de 1978 quando, na cidade britânica de Newcastle
(divisa com a Escócia), Conrad Lant
foi convidado a participar de um grupo cuja pretensão era executar covers de uma
certa banda que fazia sucesso por todo o país. Nesse fim de década não tinha
pra ninguém: o BLACK SABBATH andava
mal das pernas, o MOTÖRHEAD ainda era
considerado um grupo promissor (além de ainda não ter lançado o seminal ACE OF SPADES), algumas poucas bandas
de Classic Rock já não pisavam fundo nas composições e o JUDAS PRIEST era a bola da vez, levando multidões à loucura com
suas notas rápidas, pesadas e furiosas enquanto era objeto de desejo e
admiração de qualquer jovem cabeludo. Do outro lado tinha o Punkrock que não dava
trégua para a sociedade puritana e conservadora, desafiando as autoridades com
canções de liberdade e anarquia, enquanto a nobreza ficava de cabelos em pé (não
tanto quanto os moicanos multicoloridos da juventude vigente, mas a ideia já
estava lançada). A banda de covers chamava-se GUILLOTINE e na época contava com o ex OBERON Clive Archer nos
vocais (e sua sugestiva alcunha de Jesus
Christ) e Alan Winston no baixo,
sendo que Conrad deixou de lado sua
banda DWARFSATR para tocar guitarra
com os rapazes. Algum tempo depois, já em 1979, Archer foi acompanhar um show do verdadeiro JUDAS PRIEST e durante o evento encontrou-se com Anthony Bray, seu parceiro que tocava
bateria na banda OBERON, e após uma
conversa rápida bastou um convite meio informal para recrutarem o rapaz e coloca-lo
sob o comando das baquetas, enquanto ele alucinava-se ao som de HELL BENT FOR LEATHER e afins.
Algum tempo depois Winston
deixou a banda, sendo que Conrad
passou para o baixo e Jeffrey Dunn
assumiu as seis cordas do grupo. Nas palavras de Conrad “Jeff vai negar a vida inteira que aquele grupo não era de músicas
cover do JUDAS PRIEST, sendo que até
seu visual na época lembrava propositalmente o de KK Downing (guitarrista e fundador do JUDAS PRIEST), mas o que podíamos fazer? Éramos uma banda cover e
ponto”.
Nesta época, Conrad
trabalhava como assistente de som no Impulse Studios (de propriedade da Neat
Records que, como irão ver mais adiante, teve muita importância para Conrad e seus camaradas), e entre uma
atividade rotineira e outra, conseguia um espaço para gravar o som de sua
trupe. O “barulho”, por assim dizer, era registrado em um gravador velho que Conrad possuía, e logicamente o
resultado daquilo tudo era péssimo, contudo esses foram os primeiros passos
rumo a originalidade que as bandas tanto faziam questão naqueles anos dourados
(bons tempos...), sendo que em uma dessas gravações Conrad acabou assumindo os vocais principais, o que causou uma
reviravolta drástica no grupo. Em consenso geral, todos acharam que a voz de Conrad combinava mais com a proposta do
conjunto, e Clive Archer deixou a
banda sem ressentimentos. Esse período casou com o momento em que os jovens
passaram a trabalhar em composições próprias, usando e abusando de um conceito pra
lá de polêmico e radical que, sem exageros, mudaria a forma como todo o planeta
encararia o som pesado.
Para acompanhar o novo momento, Conrad propôs que os demais integrantes usassem alcunhas mais
adequadas com a recém-assumida proposta, que unia sem cerimônias o som ríspido
e cru do Punkrock com uma temática explicitamente satânica e ocultista. Sim meus
caros, os anos oitenta estavam batendo na porta, e junto com eles tanto o rebatizado
VENOM como toda a NWOBHM já davam as
primeiras notas do que viria na próxima década. Sendo assim, Conrad Lant passou a se chamar Cronos, que segundo a mitologia grega
era um titã anterior a era dos deuses do Olimpo; Jeffrey Dunn tornou-se Mantas,
um dos demônios relacionados ao crepúsculo (não o filme estúpido de
recentemente com aqueles vampiros sem sentido e tal) e Anthony Bray tornou-se Abaddon,
ou de acordo com a língua hebraica o “anjo do abismo”. Devidamente
apresentados, os rapazes conseguiram a ajuda do engenheiro de som Mickey Sweeney que topou trabalhar de
graça (!) na gravação da demo
intitulada simplesmente de DEMON (ou
ANGEL DUST como alguns gostam de
chamar), apresentando as faixas ANGEL
DUST, RAISE THE DEAD e RED LIGHT FEVER. Lançada em 29 de abril
de 1980, Cronos não mediu esforços
para fazer essa demo circular,
distribuindo para todo mundo que conhecia e que possuía um mínimo de influência
no mercado fonográfico, até que um dia uma dessas cópias foi parar no colo de Geoff Barton, influente jornalista e
crítico musical da revista Sounds que de cara gostou do que ouviu e virou fã.
Mais tarde Geoff ficaria famoso como
um dos fundadores da tradicional revista de Rock e Metal Kerrang!
Graças ao seu trabalho extensivo de divulgação, Geoff angariou certa notoriedade para o
trio, que passou inclusive a gozar de certo prestígio entre algumas parcelas da
mídia especializada. De alguma maneira a baboseira satânica aliada aos vocais
rasgados e o instrumental sujo e saturado de reverb do VENOM chamou a
atenção do público, que aos poucos foi aderindo aquele novo conjunto que
gritava aos quatro ventos, sem cerimônia, estarem dispostos a serem mais
barulhentos que o MOTÖRHEAD, usar
mais tachinhas e couro que o JUDAS
PRIEST, ser mais satânico que o BLACK
SABBATH e ter mais pirotecnia em seus shows que o KISS.
Diante de tantos apelos, tanto pela parte do público como da
imprensa, a Neat Records tratou de assinar um contrato com a banda e logo em
seguida trancou os rapazes no mesmo Impulse Studios para a gravação de mais uma
demo, dessa vez sob a supervisão do
conhecido Keith Nichol. O que ninguém
esperava era que, seis dias após a gravação das canções que iriam compor o novo
material, tudo seria mixado, reunido e lançado como um disco, ou seja, um full lenght (o primeiro da banda, por
sinal). Assim, ficou de certa forma fácil presumir o porquê de naquele dia 12
de janeiro de 1981 o cenário da música pesada estava diante de uma parede de
som que mais parecida com um estalo do apocalipse que uma banda formada por
jovens competentes.
O disco e seu encarte aberto. Contém informações preciosas sobre o álbum. |
Não havia dúvidas: WELCOME
TO HELL chegou abalando as estruturas do som pesado, virando ao avesso tudo
o que era conhecido até então. Peso, atitude, inovação, originalidade e pioneirismo;
os mais próximos ao grupo não economizavam nos elogios e apontaram aquele disco
como a mais pesada e blasfema obra da música de todos os tempos. Era sabido que
o satanismo já havia dado as caras através de grupos como ALICE COOPER, BLACK WIDOW
e até mesmo o maior de todos, BLACK
SABBATH, mas nunca o diabo tinha sido arrancado das profundezas das trevas
de forma tão brutal e nítida para se tornar protagonista do Rock como foi feito
por Cronos e os demais.
Não tinha mais volta. Ao escutar canções como SCHIZO, LIVE LIKE NA ANGEL (DIE LIKE A DEVIL), IN LEAGUE WITH SATAN, WITCHING
HOUR ou ONE THOUSAND DAYS IN SODOM
é impossível ficar estático diante da força do “bulldozer bass” de Cronos (técnica de som descoberta por Conrad após o mesmo plugar seu baixo em
um amplificador de guitarra), enquanto Mantas
tenta extrair o melhor de seu instrumento numa tempestade de notas abafadas e Abaddon surra seu kit com uma ira
devastadora. Em praticamente quarenta minutos estava concebido não só o primeiro
disco do grupo, mas o precursor de todo um novo gênero musical, o famigerado
Black Metal, dotado de forças que desafiavam o sobrenatural e afugentavam
qualquer puritano ou conservador. Do ponto de vista energético, é um disco que
exala a potência da NWOBHM, mas se for falar da técnica...
Entramos em um momento curioso do VENOM. Amada pelos fãs, a obra é repleta de reverb e sonorização crua e direta. Sob uma massa sonora maciça e
contando com os berros de Cronos, a
impressão que dá é a de que realmente não houve um mínimo de preocupação com a
produção do disco (escute SONS OF SATAN
e POISON para tirar suas próprias
conclusões), o que rendeu comentários nada amistosos da grande mídia e principalmente
das outras bandas, que apontavam o grupo como pífio e carente de habilidade.
Tal argumento não estava longe da verdade. Embora a película
tente extrair o que havia de mais criativo e original no trio (ANGEL DUST e a instrumental MAYHEM WITH MERCY procuram preencher
essa lacuna), realmente a falta de entrosamento com os instrumentos tornava
toda a audição uma verdadeira aventura (talvez a faixa título tenha um cuidado
um pouco maior), contudo engana-se quem pensa que a carência técnica culmina em
um trabalho pobre e digno do esquecimento. Segundo Cronos, a banda costumava ensaiar na igreja metodista de Newcastle
a qual era alugada aos sábados pelo módico preço de cinco libras. Dentro do
relato do vocalista, nos ensaios da banda o baterista Abaddon costumava detonar alguns fogos de artifício, e a fumaça vermelha
que escapava pelas janelas da igreja assustava os vizinhos que frequentemente
ligavam para o corpo de bombeiros. Tudo isso ajudava o trio a ir melhorando o
caráter técnico de seu ríspido e exclusivo som, que provaria sua verdadeira força
apenas na década seguinte, com o nascimento da segunda escola do Black Metal, (principalmente
nos países escandinavos) fortemente influenciada pelos pentagramas desenhados
por Cronos nas capas de seus discos
ou pelas letras satânicas e sem nenhum pudor.
É indiscutível a importância e o impacto que o VENOM possui na música pesada. Sua
influência é tamanha que é perfeitamente aceitável inclui-la no rol de grandes
nomes do gênero, como os já citados BLACK
SABBATH, MOTÖRHEAD, JUDAS PRIEST ou o METALLICA e o IRON MAIDEN.
Há ainda o fato de terem desenvolvido o embrião do que seria o Thrash e o Death
Metal em todo o planeta, levando os headbangers
a uma jornada dimensional que se tornaria obrigatória para qualquer indivíduo
que tenha coragem de se aventurar pelos domínios do som extremo, ao embalo de
muito gelo seco, couro e pirotecnia.
Muitas bandas podem dizer que tiveram o privilégio de terem
feito parte de uma época especial. Algumas outras podem dizer que influenciaram
uma infinidade de grupos com seus discos e composições. Mas são poucas as que
podem bater no peito e afirmar que criam um estilo, algo realmente difícil e
raro de conceber. O VENOM conseguiu.
Foi mais longe que milhares de conjuntos que pisaram nesse planeta,
arrebentando com os portões do inferno e trazendo uma verdadeira avalanche do
apocalipse para os lares das pessoas. De ridículos e exagerados passaram para a
grande sensação do Metal britânico, e não faltam histórias sobre esse icônico
grupo.
Durante os anos o disco recebeu alguns relançamentos, valendo
destacar a versão da Combat Records que apresenta as faixas bônus IN NOMINE SATANAS e BURSTING OUT, além da versão de 2002 da
Castle Music/ Sanctuary que traz o CD em formato slipcase e apresenta dez versões demos e singles de
diversas faixas do disco.
Ao diluir conceitos satânicos e blasfemos em um mundo cada
vez mais hipócrita, o VENOM nos
permite ainda hoje, mais de trinta anos após o lançamento desta obra, desafiar
os limites do certo e errado, numa forma de encontrar uma razão para a eterna
discussão entre o correto e incorreto. Para concluir, se a música pesada é a
árvore que se encontra no centro do jardim do Éden, o VENOM sem sombra de dúvidas é a maçã podre que todo cesto deveria
ter.
O disco pronto pra fazer barulho! |
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