sábado, 28 de dezembro de 2013

Overkill - Motörhead

Um dos mais marcantes discos da década de setenta: Overkill do inigualável Motörhead.
Imagina só... E se, de repente, o mundo inteiro perdesse o dinamismo, como se houvesse uma só lei a ser seguida, baseada em uma conduta sócio-política que prejulgasse e colocasse na mesma ótica a cultura, o pensamento e a opinião de uma só vez? Não haveria liberdade de expressão, voz de ação ou mesmo nenhuma atitude que demonstrasse qualquer traço de comportamento ou personalidade que poderia criar algum contraste entre as pessoas. Do ponto de vista global, os dias de hoje apresentam uma tendência amplamente inclinada ao politicamente correto, a fim de propagar uma cortina de ordem na sociedade. Há quem diga que nosso cotidiano está diretamente ligado ao momento em que o mundo passa, ignorando completamente o passado, enquanto outros veem como causa destes “dias de paz e tranquilidade” ao que o planeta vem passando nesses últimos anos à necessidade de uma ferramenta organizadora (necessidade esta gerada em resposta as crises econômicas, guerras e conflitos de interesse que formaram o cenário de praticamente todo o século passado), esquecendo-se de compreender que mesmo sob esta era de propagação da moral o ponto de vista de cada indivíduo ainda permanece ativo e conceitual.
Se no planeta em geral este paradigma encontra-se sutil, o mesmo não se pode falar dos aspectos culturais, onde é cada vez mais evidente que há, de fato, um sistema a colocar tudo em um determinado padrão de conduta. O conjunto de regras que determinam religião, política, senso crítico, enfim, toda e qualquer forma de expressão estão sendo julgados da mesma forma, partindo do mesmo princípio. Cresce o controle absoluto, diminuem as características e particularidades de cada um, reflexos de suas ações e opiniões. Contudo, ainda pode-se contar com a irreverência e genialidade de certos indivíduos, cujos exemplos, embora criados haja algumas décadas, ainda contribuem para ampliar esta ideia de liberdade.
Um desses sujeitos é Ian Fraiser Kilmister (ou Lemmy Kilmister), que desde o início dos anos setenta já demostrava fortes traços de sua personalidade única. Debochado, canastrão, mulherengo e frequentemente chapado de álcool e LSD, Lemmy foi chutado de sua ex-banda, o espacial HAWKWIND por comportamentos hostis e viajar constantemente carregado de drogas (ele foi despejado do conjunto durante a turnê no Canadá). Após o episódio, propôs para si próprio uma única regra: “não serei mais expulso de banda nenhuma! Criarei a minha própria banda para decidir se chutarei os outros ou não!” E assim, em 1975 deu origem a banda BASTARDS.
O grupo originário da capital inglesa contava inicialmente com Lemmy nos vocais e no baixo, auxiliado por Larry Wallis que tocava guitarra e cantava em algumas músicas eventuais, além de Lucas Fox que cuidava da bateria. Os primeiros trabalhos com essa formação ainda mostravam certa proximidade com o conteúdo da sua ex-banda, contudo já era possível sentir uma similaridade com o material dos anos posteriores que consagrariam o rebelde Ian em ícone de uma geração. Os ensaios do grupo eram frequentemente regados a muita bebida e drogas, e não demorou para Lemmy mudar o nome da banda para algo mais, digamos, condizente com sua realidade. Saía assim o título BASTARDS para entrar o único e histórico MOTÖRHEAD, cujo significado da palavra está próximo a algo como “viciado em anfetaminas” e já havia sido criada por Lemmy em uma faixa para o HAWKWIND (que na ocasião não chegou a ser lançada nos álbuns do conjunto).
Após um contrato conturbado com o selo United Artist Records, o trio preparou-se para gravar o que seria o primeiro disco da banda, contudo mudanças aconteceram no curso da história. Lemmy, que já andava insatisfeito com a performance de Fox (ele dizia que faltava pegada e dinâmica na forma de tocar do baterista) despejou o sujeito, contando com o auxílio de um jovem que conhecera há algum tempo, o seminal Philty Animal Taylor para concluir as gravações. Tão descarado, beberrão e debochado quanto Lemmy, Taylor era dono de uma forma exclusiva de tocar bateria, que incorporava elementos de Classic Rock e Punk Rock na medida certa, sendo que o baixinho caiu como uma luva no conjunto. Com a conclusão das músicas, o disco estava pronto para sair do estúdio quando a gravadora interveio e alegou não gostar do resultado da película, engavetando o material que só veria a luz do dia em 1979. Após o ocorrido Lemmy e seus comparsas continuaram a aventurar-se nos pubs londrinos até que em 1976 ficou decidido que a banda passaria a contar com mais um guitarrista. Foi ai que entrou a presença do ilustre Fast Eddie Clarke, que tocava notas ferozes numa linha de Blues Rock lisérgico. Foi a deixa para Larry Wallis deixar o conjunto, e a partir dai o trio mais famoso do som rápido, sujo e agressivo começou a sua excitante jornada nas terras selvagens e opressoras das décadas pós-guerra.
Munido de um visual que combinava cinto de balas, camisas de cowboy e chapéus de faroeste, além de jaquetas de couro e patches, Lemmy e sua banda conseguiram soltar um título na praça, que atendia simplesmente pelo nome de MOTÖRHEAD (desta feita pelo estranho selo Chiswick) e trazia uma sonoridade abafada, carregada de distorção e contando com covers do HAWKWIND, de certa forma ainda uma sombra na imaginação Lemmy. O trabalho original de 1977 apresentou pela primeira vez a famosa mascote Snaggletooth criada por Joe Petagno (famoso atualmente por conceber capas para diversos grupos como SWEET, NAZARETH, KRISIUN, MARDUK entre outros), mas não foi bem digerido pelo público, embora o apelo Punk já fosse uma realidade em Londres e o grupo atendia perfeitamente aquela demanda. Ainda não tinha sido daquela vez que os “bastardos do rock” chegariam ao posto merecido.
A versão de 2005 disponibilizada pela Sanctuary Records.
Contudo, o mundo pode oprimir a todos, mas só derruba os fracos. Era final de 1978 quando, mais uma vez, o trio arregaçava as mangas e encararia uma nova jornada ao estúdio, dessa vez com experiência e contando com um bom selo para assessorá-los (o já famoso Bronze Records). Gravado no Roundhouse Studios e Sound Development entre os meses de dezembro de 1978 e janeiro de 1979 e valendo-se da produção de Jimmy Miller, OVERKILL pode não ser o primeiro disco a apresentar a clássica formação em ação, mas sem dúvida é o trabalho que abriu as portas do cenário fonográfico para o trio. Rápido, agressivo, certeiro e letal, o dia 24 de março marca a data de lançamento do terceiro trabalho da banda que brinda o ouvinte com uma audição visceral e ao mesmo tempo contagiante e até agradável (escute a bem sacada faixa I WONT PAY YOUR PRICE e concorde), com instrumental de arrancar elogios do mais cético crítico e letras carregadas de verdade nua e crua. A obra já começa pela faixa título, que pode ser perfeitamente comparada a uma marcha para a guerra. O trabalho de Taylor nas baquetas faz da música uma verdadeira máquina de destruição, acompanhada pelas notas precisas de Eddie e do baixo martelado de Lemmy, enquanto o mau caráter destila suas proezas numa vocalização que faria Johnny Cash encher-se de orgulho por ser influência desse malicioso rapaz. As canções são dotadas de um sentimento que se desvia das mitologias constantes dos outros grupos de Heavy Metal, ou do ocultismo propagado pelo BLACK SABBATH durante muitos anos, agindo como um catalizador da realidade, desnudando verdadeiras desventuras pessoais de Lemmy, o compositor da banda, como em STAY CLEAN, que fala abertamente de manter-se firme em sua conduta quanto às tendências do mundo (sobretudo religião e política, encaradas como verdadeiras instituições de manipulação de massa). Não bastasse o mesmo Lemmy ser dotado de uma aura carismática inabalável (o disco ainda conta com a faixa I’LL BE YOUR SISTER que fala de amor, mas de uma forma bem mais carnal e sincera), é incrível perceber como a marca de sua banda criou verdadeiros pilares para diversos gêneros musicais, do Punk Rock ao Black Metal, sendo correto afirmar que uma grande fatia dos jovens que viviam a primavera dos anos dourados do Heavy Metal literalmente abraçaram sua cria como uma força vitalizadora, um refúgio para suas mentes exaustas da opressão psicológica regida pela sociedade puritana. A potência de faixas marcantes, como NO CLASS (que posteriormente contou com uma magistral versão cover do grupo PLASMATICS, da lendária Wendy O. Williams), DAMAGE CASE (esta gravada em parceria com o músico e compositor Mick Farren, amigo de longa data de Lemmy), METROPOLIS e TEAR YA DOWN (onde o trabalho das seis cordas de Eddie aliado ao motor da bateria de Taylor deixa clara uma raça sem igual) fazem do conteúdo do álbum algo marcante, sobretudo para a atitude de Lemmy, que enfim foge da sombra do espacial HAWKWIND. Foi seu salto para trabalhos fenomenais que se seguiram, onde a veia Rock’n’Roll enfim se libertava e deixava bem claro que o mainstream, seja lá o que fosse, teria que empurrar o MOTÖRHEAD goela abaixo e aceitar sua fúria incontrolável e puramente genuína, uma fusão perfeita do Rock com o Punk e o Heavy Metal.
CAPRICORN, uma das composições que mescla bem os domínios dos fatos com a realidade, mostra claramente toda a discussão sobre opinião aberta nestas linhas, onde a conduta de um indivíduo parte unicamente dele mesmo - o âmbito social gera apenas influência superficial em suas atitudes. LIMB FOR LIMB encerra o trabalho apresentando um solo de guitarra executado pelo próprio Lemmy (o da segunda parte da faixa), dividindo as seis cordas com Eddie num frenesi quase hipnótico. Não há dúvidas: a tribo metalhead estava diante de um trabalho realmente especial, que em apenas trinta e cinco minutos ficou conhecido como um dos mais rítmicos, certeiros e pesados de toda a década de setenta.
Foi um estouro: o disco caiu nas graças do público e enfim a banda pode desfrutar de uma cena mais favorável as suas atitudes. Jovens de diversos países da Europa chacoalhavam seus corpos e cabelos num turbilhão de euforia, marcados pelo romper frenético das quatro cordas do velho Rickenbacker de Lemmy, que não perdia a mão tanto em relação ao público que já gritava seu nome como nas composições sobre sexo, drogas e vida livre, como pode ser acompanhado durante e turnê que promovia o lançamento do álbum, que acabou passando pelo tradicional Paris Theatre em Londres, onde o trio executou sete faixas desse álbum para uma plateia ávida e enlouquecida.
Longe de ser possuir um apelo físico sexual (Lemmy tinha berrugas na cara, além de velhas e desgastadas tatuagens e dentes faltando, enquanto Eddie mais parecia um raquítico empunhando uma guitarra e Taylor era um lunático sem limites), a banda ficou notória por colecionar aventuras pelo solo inglês, divertindo-se com garotas de toda a parte e de todas as nações. Os rumos tomados pelos “bastardos do rock” serviram de base para toda a geração de bandas das décadas seguintes, em especial as dos anos oitenta, que de fato viam no MOTÖRHEAD uma miríade de oportunidades de apresentar um trabalho coeso, simples e tecnicamente pujante. Algumas composições de OVERKILL são executadas pelo grupo até hoje, como a faixa título, CAPRICORN e METROPOLIS.
Como mostra de poder das músicas, o disco foi relançado através dos anos, sendo a versão em CD do selo Sanctuary Records a mais completa. O trabalho vem em uma versão dupla, onde o disco bônus apresenta os B sides de todas as faixas regulares do álbum. Nele constam muitas versões da canção LOUIE LOUIE (um cover do cantor de Blues afro americano Richard Berry) além de outras versões para TEAR YA DOWN e LIKE A NIGHTMARE, que serviram para completar os singles OVERKILL e NO CLASS para alavancar o lançamento do álbum no final da década de setenta. O disco ainda conta com as apresentações no programa de rádio da BBC John Peel Sessions de 1978 além do concerto ocorrido em 1979 promovido pela mesma estação.
Um registro desses de mais de três décadas serve como uma aula de personalidade, pois se antigamente era motivo de orgulho possuir senso crítico e uma opinião formada sobre a própria vida e como ela caminha, será que hoje as atitudes de cada um são encaradas dessa maneira? Chegamos mesmo ao ponto em que é muito mais simples ou cômodo permitir que a massa pense e aja por nós, sem sequer questionar o motivo ou analisar suas consequências? O mundo atual, se encarado pelo âmago social está tornando-se tranquilo e satisfeito... Mas e sua mente, também está?

A versão nacional apresenta formato duplo. Muito prático!


Escrito em 28/12/2013 às 18hrs. e 42min.

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